Autocrítica: Lavanderia (Roads of Trust), 2012
A Roads of Trust (trad.: Estradas de Confiança) é uma série de contos que formam um romance, nascida em janeiro de 2012, quando eu era o administrador de uma comunidade no LiveJournal de histórias BL, e criei um desafio chamado El Verano — em que nós tínhamos que criar contos de verão com um número limitado de palavras.
Naquele ano, eu ainda tava no auge insuportável das minhas histórias de época: hiper prolixo e ininteligível. Eu não escrevia mais histórias contemporâneas e me sentia bom demais pra usar palavras simples em textos simples, já que eu tinha começado a ler muitos livros de época também, principalmente da literatura francesa e italiana. A consequência disso foi, óbvio, eu mesmo fazer as pessoas perderem o prazer de me ler porque todo mundo saía sem entender nada, e eu basicamente tinha que explicar o plot de tudo que eu escrevia — mas a coisa era mesmo tão incompreensível que, mesmo depois de eu explicar, as pessoas ficavam naquele “Hmmm…”, de quem absolutamente não sabe o que comentar, por não terem entendido nem uma linha pra poder argumentar e, claro, por medo de me desmotivar dizendo que a coisa toda era péssima.
Mas eu tinha, sim, gente que me dizia que a minha escrita era muito problemática e com todos os bons argumentos possíveis. Eu só era orgulhoso demais, e preferia chorar e discutir do que respirar fundo e fazer uma avaliação sincera daqueles textos que eu amava tanto escrever. Só que, como se diz na linguagem popular, em algum momento a água já tava batendo bem acima da minha bunda, além de que eu descobri outros livros, principalmente de cinema e teatro, que me ajudaram muito a ir revendo todas essa minha necessidade de escrever coisas intraduzíveis.
Então, em janeiro daquele ano, já com vontade de tentar escrever algo contemporâneo mas sem ter a mínima ideia do que fazer, eu vi uma imagem num site de papéis de parede que eu posso dizer com segurança que mudou a minha vida:
Ok, não dá pra ver muita coisa por causa da minha edição incrível da época que tava bem dentro da moda da internet, então eu vou descrever até pra ajudar na acessibilidade: um homem latino tá dentro de um carro antigo (provavelmente um desses muscle cars) estendendo a mão pra tentar alcançar uma garrafa verde no porta-luvas, e tem um bulldog muito fofinho observando a ação dele; mas o calor é tanto que as coisas do carro estão derretendo, e a camiseta branca do cara chega a grudar no banco.
É claro que eu não vou lembrar exatamente como surgiu a ideia do primeiro conto da Roads, mas ainda lembro de ver essa imagem e pensar coisas como: “Eu quero muito escrever algo com um personagem assim. Eu nunca escrevi com personagens latinos, né?” — porque, até então, todos os meus personagens eram europeus ou japoneses (e na época realmente não tinha muito dessa crítica de síndrome de vira-lata) — “Aliás, acho que nunca nem li uma história BL com algum personagem latino que gosta de carros velhos. E se ele for mecânico?” — afinal, eu realmente nem encontrava direito histórias originais ou fanfics que se passavam no Brasil e/ou tinha personagens com essas características.
Enfim, uma simples imagem achada por acaso fez com que eu me animasse a um autodesafio que com certeza requeria passos bem maiores que as minhas pernas — mas foi assim que, de alguma maneira, eu vi toda essa cena, a primeira da Roads que persiste comigo há 12 anos agora, e que mudou não só a minha escrita, mas muito da minha maneira de pensar devido a tudo que tive que pesquisar e passar pra escrever essa história.
Eu cheguei a mencionar e a mostrar alguns trechinhos de Lavanderia por aí (tem a história completa da criação Roads of Trust no final do ep. Presente, pra quem tiver mesmo interesse nas minhas ladainhas), mas, já que eu preciso colocar as engrenagens do meu cérebro pra funcionar e recuperar minha capacidade de escrita e criativa (atrofiadas nos últimos meses), eu decidi pegar esse conto pra falar mal dele publicamente de maneira técnica — usando tudo que aprendi de lá pra cá e, quem sabe, talvez compartilhando alguma coisa com a uma pessoa que vai estar lendo este textão interessada em aprender ou descobrir coisas novas sobre escrita.
Lavanderia
“Ar condicionado quebrado”, dizia a placa pendurada na porta, sobre a qual ele soprou o riso permisto em nicotina, empurrando-a mesmo assim; a cesta encurralada entre o braço e o abdômen, a regata branca absorvendo a transpiração excessiva da pele castanha naquele verão, saudando os quarenta graus do litoral americano.
A percussão da quinzena de máquinas era sopro de fundo aos roncos de uma única, operada por um rapaz de menor estatura, cujos fios escuros dardejavam as saídas do coque e mechinhas desiguais estreitavam-lhe as faces que de tão alvas nitidizavam-lhe o acervo de sardas e encarnavam a elipse labial; que de tão alva, a pele mal se distinguia da camiseta de malha, franzida nos cotovelos, contraste absoluto à legging preta que lhe calçava os coturnos com fivelas de prata. O mexicano sorriu, saboreando todos aqueles ingredientes personalísticos de um monumento singular, instalando-se três vezes adiante, sem que suas contribuições sonoras salvassem o outro do transe à dança cíclica da máquina.
- Por que a gente terminou mesmo? — Dirigiu-se ao menor, forçando-o a desdobrar a atenção.
- Porque você é um idiota. — Esclareceu depressa. Nem uma guilhotina teria sido mais ágil.
O mexicano desandou o cigarro do trago para rir, de primeira interessado nas discrepâncias de ambos — porque um usava leggings e coturnos sob a pressão cáustica da temporada, e o outro um jeans esburacado e chinelas que também o pisava, além das artes em preto e branco gravadas em sua pele quase em repleção; seria, talvez, os cabelos presos de ambos alguma compatibilidade ínfima, dádiva finita da estação. Todavia, o curso dos olhos negros de Alejandro imergiram a outros aspectos, pois a delgadeza do americano dimanava de seus adejos na música clássica e eram tão palpáveis que tornavam-no afamado.
- ‘Tava no ensaio? — O mais velho achatou o cigarro no teto já encarvoado da lavadora. Sua insubmissão a rotinas deveria ter cinzado no mínimo todas.
- Sim.
Destacou a esquerda dos lábios. A mente animara Alyson a circunvagar pelo salão onde ensaiava diariamente, e onde se confinavam as memórias favoritas do mexicano, em vez das abundantes artificialidades dos palcos. Elas o impeliram a contornar o corpo menor em seus braços, prensando-o sobre o balcão chacoalhado. Os olhos do americano excederam-se na súbita distensão, tendo as mãos ineficazes em intervir entre si e a caixa de hélices. Alejandro escorreu os lábios ao inverso, fugindo da gravitação ao pescoço para pairar na orelha do mais novo, roçando-os de olhos cerrados, a barba rasa persistindo até o suspiro precipitado dos lábios que se afracaram para receber dois dos dígitos do mais velho a afagá-los.
- Você sente minha falta…
- Não… — Resistia trépido, o bailarino; a seguir, invertido de corpo inteiro à fronte do mecânico para ensejar que um beijo concluísse o rompante, não condicionando argumentos pelos quais se poria a correspondê-lo, fazendo-o com os dedos anelados aos cabelos negros libertos na intrusão dos mesmos. O mexicano alçou-o pelas pernas, encaminhando-o a qualquer parede esquiva das vistas das janelas. Sentou-o numa das máquinas, desvestiu-lhe as pernas e embainhou-lhe o corpo tantas vezes quanto possível, enquanto do próprio torso era enxotada a regata a favor da glutonia tátil do outro.
O bailarino transvasava-lhe à boca o desejo de duas semanas oprimido pelo orgulho, e tanto quanto os adesivos arenosos sorviam-lhe espalmados as marés do corpo escaldado, o mais novo embriagava-se das sudações inestancáveis de cada membro teso a comprimir os seus.
O primeiro ponto que tem que ser abordado porque é o que salta aos olhos e acaba prejudicando o texto inteiro é, obviamente, a quantidade excessiva de palavras rebuscadas e a prolixidade — sendo mais claro, eu basicamente pegava as palavras mais incomuns que eu conhecia, sim, e as colocava em frases muito longas. Então era um duplo absurdo, ou um duplo homicídio da literatura.
A percussão da quinzena de máquinas era sopro de fundo aos roncos de uma única, operada por um rapaz de menor estatura, cujos fios escuros dardejavam as saídas do coque e mechinhas desiguais estreitavam-lhe as faces que de tão alvas nitidizavam-lhe o acervo de sardas e encarnavam a elipse labial; que de tão alva, a pele mal se distinguia da camiseta de malha, franzida nos cotovelos, contraste absoluto à legging preta que lhe calçava os coturnos com fivelas de prata. O mexicano sorriu, saboreando todos aqueles ingredientes personalísticos de um monumento singular, instalando-se três vezes adiante, sem que suas contribuições sonoras salvassem o outro do transe à dança cíclica da máquina.
Marquei em negrito as palavras que não só prejudicam a clareza de toda a imagem descrita na cabeça do leitor, mas que emperram a fluência da leitura também, porque inevitavelmente fazem quem tá lendo parar pra processar cada informação colocada ali e que muitas vezes é desnecessária pro entendimento dessas frases, da ideia que eu queria passar.
Basicamente, numa história de ficção, quanto mais a gente enrola o leitor pra concluir uma frase, adiando o objetivo ou a informação mais importante, menos ele entende ou se importa com o que tá sendo dito. Isso é o problema da prolixidade: como se ela fosse uma estrada cheia de curvas, dando a sensação de que a gente tá preso em voltas, andando em círculos; e as palavras exóticas são, basicamente, a quantidade de pedras nesse mesmo caminho.
- “Percussão” não é uma palavra desconhecida, “quinzena” também não, mas são palavras que a gente não costuma usar no dia a dia, e têm sílabas fortes que criam um alongamento sonoro e visual (per-cus-são; quin-ze-na), e vêm uma logo junto da outra. Além disso, se tratando de um enredo contemporâneo, não tinha sentido nenhum eu preferir essas palavras que tentavam fugir do coloquial. E “sopro de fundo”, que vem depois, não só se soma com a enrolação toda, como não passa uma ideia instantânea do que eu tô querendo dizer. Nesse último caso, a oração teria soado mais ágil e mais clara se eu tivesse escrito “O som das quinze máquinas parecia sussurros perto de uma única que roncava mais alto”, mesmo usando um número maior de palavras. Afinal, quanto mais o leitor consegue prever o nosso vocabulário, mais rápido ele lê; e quanto mais rápido ele lê conseguindo entender o que foi dito, mais imediata as imagens do texto conseguem se formar na cabeça dele. Leitor nenhum gosta de parar no meio de uma descrição, queimando fuzível, tentando imaginar o que um autor disse, e por isso que em descrições longas fica melhor ser o mais direto e explícito possível, além de o texto exigir uma organização gramatical melhor.
- “Dardejavam” até dá pra entender com o contexto da oração, que menciona o coque de cabelo e tal, mas ainda não passa uma imagem exata do que tá sendo dito ali, sem falar que os cabelos parecem que tão atirando em alguém. Eu poderia muito bem ter trocado pra “escapavam”: “cujos fios escuros escapavam do coque” — e eu tiraria esse “saída” que tinha ali porque o que escapa já está saindo, manter seria redundância.
- “Estreitavam-lhe” e “nitidizavam-lhe” não só evidenciam que eu tava vindo de textos metidos à escrita de época, como fazem a coisa soar tão formal que eu pareço um velho de 90 anos tentando descrever, sem noção nenhuma, como vivem os jovens de 2012. Além disso, ambas são palavras longas, e “nitidizar” é tão incomum que tem gente que vai ler sem apreender o significado, mesmo que a oração sugira um contexto. O que eu faria hoje em dia é: “e mechinhas desiguais estreitavam suas faces que,” — uma vírgula aqui cai bem, porque é uma maneira de controlar o ritmo do leitor e ajudar ele a ir com mais calma pra prestar mais atenção na imagem que tá sendo descrita, especialmente se tem muitos detalhes — “de tão alvas,” — vale mencionar aqui a escolha de palavras: preferi manter “alvas” em vez de “brancas”, embora o segundo seja mais coloquial, porque “brancas” poderia dar a entender que o Alyson tá tão pálido que parece uma folha de papel morrendo, a própria sonoridade da palavra faz ela soar mais forte por causa da sílaba tônica: bran-cas; “alvas”, por sua vez, tem um som mais suave e que também remete à poesia, além de não ser tão incomum nem complicada de entender pelo contexto — “tornavam nítidas suas sardas” — por fim, tirei o “acervo” porque é pura firula textual, pra fazer a coisa soar mais poética do que realmente é.
- “Encarnavam a elipse labial” chega a ser sacanagem do Kyran de 2012, parece deboche de quem fala algo difícil sabendo que a outra pessoa não vai entender. Especialmente nessa época, quando eu usava o verbo “encarnar”, é porque eu tinha aprendido com a minha overdose de dicionário que a palavra basicamente significa “fazer-se carne; tornar-se mais encorpado; criar ou converter-se em carne” (HOUAISS, 2009), e eu queria dizer que… não faz nem sentido o que eu queria dizer, porque eu liguei o verbo “encarnavam”, no plural, ainda com os cabelos do Alyson, e isso significa que os cabelos dele é que faziam os lábios dele se tornarem carne/carnudos. Mó rolê pra pensar nisso, eu mesmo me demorei aqui alguns segundos. Sem falar que, hoje em dia, a gente conhece o verbo “encarnar” mais pelo significado espiritualista do que pela relação com a carne em si. E logo em seguida meti um “elipse labial”, sendo que pouca gente sabe/lembra o que é exatamente uma elipse, e como que uma elipse pode ter formato de lábios (“elipse labial”), e não os lábios que tinham formato de elipse (tipo: “lábios elípticos”). Enfim, tudo isso torna essa sequência de palavras uma coisa bem abstrata.
- “legging preta que lhe calçava os coturnos com fivelas de prata” — o problema aqui é que, basicamente, eu digo que a legging preta é que estava calçando no Alyson os coturnos dele. Mas legging não tem como calçar outra pessoa, até porque ela não tem vida; no máximo, eu poderia usar a metáfora de acordo com a imagem de que eram as leggings que tavam calçando os coturnos, porque daria pra entender que, por leggings, eu me referia metaforicamente às pernas do Alyson onde esse tipo de calça fica tão justa.
- “instalando-se três vezes adiante” — outro momento em que a oração não tá clara e ainda tem erro semântico: a oração diz, literalmente, que o “Alejandro” se instalou 3x mais na frente de onde ele tava antes. O que eu quis dizer, na verdade, é que ele deu 3 passos adiante.
- “sem que suas contribuições sonoras salvassem o outro” — aqui nada é ininteligível realmente, mas tem o problema, de novo, de eu usar muitas palavras longas e desnecessárias em sequência, e é isso que prejudica o entendimento imediato da oração: con-tri-bu-i-ções + so-no-ras + sal-vas-sem. Além disso, esse “salvassem” é inútil, porque o Alyson só tá ali ignorando ele propositalmente e olhando pras máquinas, e o contexto tenta sugerir que o “Alejando” quer é tomar a atenção dele pra si. Eu acho que uma simplificação cairia melhor: “sem tirá-lo/tirar ele do transe da dança cíclica da máquina”. Removi “o outro” porque soa muito mais impessoal, e dependendo do contexto até um pouco de desprezo, porque a gente tende a usar quando não sabe ou não se importa em mencionar o nome desse “outro” — sendo que, aqui, mesmo com o narrador em 3ª pessoa, a gente tá indo pelo ponto de vista e sentimentos do “Alejandro”, que foi ali justamente pra ver e tentar reatar com o Alyson, então o Alyson não é qualquer um.
O texto segue com outros momentos semelhantes, como “O mexicano desandou o cigarro do trago”, o que não dá a entender o próprio objetivo, a informação da oração, que é que o Sandro tirou o cigarro no meio de um trago pra rir; “artes em preto e branco gravadas em sua pele quase em repleção” que estende em 12 palavras o simples fato de que o Sandro era cheio de tatuagens; “pois a delgadeza do americano dimanava de seus adejos na música clássica e eram tão palpáveis que tornavam-no afamado.” que, tentando resumir ao máximo e depois de muito esforço dos meus neurônios, com a ênclise gramaticalmente errada no “tornavam-no”, acho que quer dizer que o tipo físico (magro, pequeno e delicado) tinha um quê de música clássica nele todo, construindo uma aura em volta dele, de um jeito que deixava o Sandro “afamado” — que pode significar tanto “estar com fome” quanto “aquele que ganhou fama”, o que obviamente torna a frase mais abstrata que jogar um balde de várias tintas coloridas numa tela e dizer que ali tem um retrato de Shakespeare; e, por fim, em “e tanto quanto os adesivos arenosos sorviam-lhe espalmados as marés do corpo escaldado” eu simplesmente não faço mais ideia do que eu queria dizer.
Na época, eu não sabia, mas eu tava sofrendo do efeito Dunning-Kruger — que é quando a pessoa aprende uma coisa ou uma informação de maneira rasa, mas se acha a mais inteligente, especialista no assunto; ou quando a pessoa que tem menos conhecimentos sobre algo é que se acha a única conhecedora de tudo, e um exemplo é essa nossa era de fake news, principalmente da parte bolsonarista, que se acredita superior por ter recebido a informação privilegiada no WhatsApp de que existe mamadeiras pornográficas em escolas e nossas crianças estão sendo doutrinadas à sodomia. Enfim.
É óbvio que o efeito Dunning-Kruger não é algo consciente, e que tem por influência principalmente o nosso ego. Falando sobre minha própria história, eu sempre vivi sendo chamado de burro, fracassado e sem futuro — então, quando eu comecei a ler livros de época, consumir linguagens complicadas, apreciar clássicos, adquirir o hábito de consultar o dicionário e pesquisar coisas exclusivas na internet, eu usei a escrita não só como escape consciente do mundo real, mas também pra, de maneira inconsciente, dizer pra mim mesmo que eu não era tão estúpido. E aquele era o auge da minha jovem-adultice, durou dos 18 aos 24 anos mais ou menos, tempo que é considerado hoje em dia um período ainda adolescente; e na adolescência a gente tem sempre essa coisa de achar que só a gente tem razão e tudo mais. Além disso, o ser humano tem esse mecanismo muitas vezes involuntário de se sentir melhor ou superior fazendo o outro se sentir de alguma forma inferior, todo mundo já fez isso, mesmo que (geralmente) sem perceber. Por isso que ver ninguém entendendo minhas histórias, me fazendo ter que explicar detalhadamente toda a lógica complexa com que eu as escrevi, com certeza me fazia sentir um grande intelectual. Mas é claro que eu sempre me achei humilde, e a humildade é uma vaidade também.
Revisitando aqui meu livrinho do sr. Schopenhauer, A arte de escrever (um dos livros que, evidentemente, me fizeram sair dessa minha bolha vintage dourada), ele diz que as pessoas prezam mais a informação do que a instrução, e que as pessoas realmente se sentem superiores pela quantidade de informações que acumulam. A diferença entre as duas é que: a informação é o título dos assuntos, como “Existe água em Marte” — e a partir disso a pessoa se sente muito fodona por saber o que poucos sabem, e ela coloca isso dentro da própria interpretação sem ter lido mais que uma frase ou um artigo sobre, porque o que ela já tem parece o suficiente, parece tudo pra ela, e se aprofundar na questão requer mais tempo e mais esforço mental também, além de que muitas pessoas não sabem que podem ir além, não sabem pesquisar, que é como ir em busca e como compreender os assuntos além de só perguntar pro Google; portanto, a instrução seria justamente esse conhecimento aprofundado, saber desde quando, como e por que existe água em Marte, o que pode ser feito com isso, como essa água tá ali, quais são os componentes dela e tudo mais.
Aqueles que elaboram discursos difíceis, obscuros, dubitativos e ambíguos com certeza não sabem direito o que querem dizer, mas têm uma consciência nebulosa do assunto e lutam para chegar a formular um pensamento.
Schopenhauer, A arte de escrever (pág. 92, ed. L&PM, 2005)
Acho que essa frase se aplica muito a mim na época: Eu realmente tinha várias informações novas e não sabia bem o que fazer com elas. Em 2010 eu entrei na faculdade de História também pra me ajudar nessa questão, e só aos poucos eu fui aprendendo não só como absorver essas informações, mas a estudar mais sobre elas, interpretar de diversas maneiras e tudo mais. Tanto que a Roads mesmo surgiu em 2012, no princípio de tudo isso; e em 2014, quando eu já não era mais universitário, eu já tinha outro olhar sobre minha própria escrita, adquiri esse livrinho do Schopenhauer e, principalmente, o Story do Robert McKee, que foi uma virada de chave crucial na minha “carreira literária” e abriu uma grande porta de conhecimentos — daí eu comecei a estudar, finalmente!, escrita criativa, cinema, roteiros, e sobretudo a como escrever coisas mais claras, mais simples e que tivessem ainda mais significado. Descobri o prazer de me sentir burro diante dessa infinidade de coisas que eu não sei e nunca vou saber nem metade, basicamente. Eu lembro de até hoje eu reler alguns livros antigos que eu lia no auge da minha prolixidade, os mesmos livros que eu acreditava estar imitando a escrita, e ver que nem os autores mais rebuscados escreviam daquela maneira.
Então a minha própria escrita de histórias de época era a minha interpretação ainda ingênua, amadora mesmo, do que eu lia.
Não se pode (…) diminuir o número de palavras sem ampliar, ao mesmo tempo, o significado das palavras restantes. E, por outro lado, não se pode fazer tal ampliação sem tirar desses significados sua determinação mais imediata, favorecendo assim a ambiguidade e a obscuridade, o que acaba por impossibilitar a precisão e a clareza da expressão, em falar em sua energia e pregnância.
pág. 104
Graças às entidades superiores, ao conselho do alienígena mais famoso do Brasil, e principalmente, é claro, à minha curiosidade e persistência, eu busquei conhecimento e pude enfim! deixar essa fase e, apesar de eu ainda viver reclamando dos meus textos, tenho consciência de que melhorei a lot.
Outras discordâncias menores que tenho com esse conto e acho interessante comentar é que:
Pra mim, existia muita impessoalidade na narrativa, pela maneira como o narrador se refere aos personagens mais por adjetivos do que pelos nomes deles: “o mexicano”, “o mecânico” — “o americano”, “o bailarino”.
Isso é mais uma questão minha, mas eu sempre tenho a sensação de que chamar o personagem pelo nome torna a coisa mais íntima — tanto da minha parte com os meus personagens, quanto pro leitor com os meus personagens. A minha lógica é que a gente sempre chama as pessoas mais próximas ou pelos nomes, ou por apelidos, certo?
Como eu expliquei ali em cima, a gente só diz “o outro” quando a pessoa não é importante o suficiente pra ser nomeada na conversa ou receber algum adjetivo marcante; assim como a gente só tende a chamar um amigo ou um parceiro de “amigo” ou “namorado/marido/companheiro” quando a gente tá conversando com alguém que não conhece essa pessoa e nem vai precisar conhecer, então essa pessoa não precisa nem do nome nem da aparência desse amigo ou parceiro nosso.
Além do mais, acho que reduzir o vocativo a características desses personagens reduz um pouco a humanidade deles — porque “o mexicano” pode ser qualquer mexicano genérico, ou um estereótipo de mexicanos, o que objetifica o personagem ao transformar ele mais num boneco, numa representação de várias coisas, do que num humano único e distinto de todos — , ou reduzir o personagem àquilo que ele faz — como se, de novo, “o bailarino” fosse algo genérico e limitasse as habilidades do personagem à dança.
Eu fui criado no meio das fanfics, e na minha época esses vocativos eram basicamente o padrão. Só depois eu fui começar a ler livros de autores bem mais experientes e fui captando detalhes como esse.
Puxando esse gancho, também é por causa dessa influência das fanfics que, até a criação da Roads, todas as minhas histórias terminavam ou em sexo ou em morte (e é porque eu nem tinha caído nos filósofos que discutem Eros & Thanatos ainda, isso foi mais tarde). Continuam sendo temas recorrentes nas minhas histórias, mas atualmente eu tento refletir e aprofundar ao máximo essas questões, com a preocupação (excessiva, até) de fazer o leitor sentir alguma conexão com essas abordagens. Naquela época, porém, todos os meus contos tinham o mesmo roteiro que esse: Personagens se reencontram/se reconciliam/se conhecem > Trocam míseras palavras > Começam a transar > Fim. Isso independente da época em que a “trama” se passava.
A verdade é que eu nunca fui muito de escrever cenas de sexo ultra detalhadas e longas, embora eu tivesse começado a ler fanfics que tinham bastantes descrições explícitas — mas, também, não era nada comparado ao padrão de hoje, pelo que eu me lembre. Essas descrições mais detalhadas e longas eu fui encontrar mesmo é nos livros do Marquês de Sade e outros libertinos, e li/leio tantos desses que hoje fico meio cansado de me demorar muito nisso. Meus Dois Amantes foi exceção à regra porque o narrador, o Alessandro, veio sozinho contando toda aquela bagunça; mas, na hora de eu mesmo revisar esse livro, foi meio cansativo pra mim. O que foi bom, porque o propósito de Meus Dois Amantes era realmente derramar tanto sêmen que ia secar a fonte e os leitores iam querer um final feliz logo.
A questão é que, na época de Lavanderia, eu colocava cenas e menções de sexo porque era o que o pessoal gostava de consumir, era o que todo mundo escrevia também. O objetivo inteiro da trama era O SEXO, A Conexão Máxima dos protagonistas apaixonados, então todo roteiro tinha que se encaminhar pra isso. Hoje, além de eu ser um velho cansado de ler esse tipo de coisa e achar que o sexo é hiper sobrestimado, tenho uma preocupação (excessiva, repito) com o propósito, a mensagem, a reflexão, a profundidade da história; e, se sexo não contribui em nada disso, ele simplesmente não é necessário. Em Love at Midnight, por exemplo, os protagonistas já se conhecem e se apaixonam no sexo à primeira vista, e é a partir desse fogo todo que a relação deles vai se aprofundar, pro bem e pro mal; já em La Danse des Morts, o sexo não só tá ali pra construir a relação dos personagens, como desenvolver o narrador-protagonista, o Gustave, e se referenciar à sociedade da época.
A Roads of Trust, no entanto, já foi criada como um slice of life: Eu comecei a ver cenas cotidianas deles na minha cabeça e queria escrever e publicar o que eu via. Nisso, criei inúmeros contos e só gradativamente fui desenvolvendo o enredo principal e os personagens, até que hoje, enfim, qualquer sexo vai ter um porquê ali dentro (ainda não escrevi, né, Deus e vocês que me perdoem). Como eu era muito contista na época, eu ainda tava mesmo aprendendo a desenvolver plots, a entender o que é considerado importante ou não, graças ao Story do McKee, e também de acordo com a minha personalidade e o que eu queria mostrar como autor, mesmo sendo autor de internet, sem a pressão de exigências de editoras e de um grande público.
Por fim, nessas de desenvolver tanto a história, foi que eu finalmente entendi que o Alyson é assexual e não curte transar em lugares públicos, além de que sexo é a última coisa que faria ele ceder e se reconciliar com alguém numa hora dessas. Pelo contrário, qualquer tentativa de sexo enquanto ele tá puto só deixaria ele mais puto ainda. Então essa cena do Lavanderia não faz o menor sentido com a história hoje, é como se fosse uma fanfic minha e mais amadora do que é a Roads atualmente.
Ainda assim, é inevitável que eu tenha algum carinho por esse conto. Ele é péssimo, mas o fato de ser péssimo me levou a muitos lugares, inclusive me trouxe aqui, onde posso estar avaliando cada mísera frase sobre as quais eu não raciocinava nada ao escrever na época. Fora que foi a partir disso que eu criei essa série que, pra mim, é tão gostosa de escrever — mesmo que a vida, os fatores externos, acabem dificultando que eu continue as publicações na frequência que eu gostaria.
Mas eu não me vejo parando de escrever e evoluir a Roads tão cedo. Eu realmente queria só ter mais disponibilidade pra ela, me dedicar inteiramente a ela e às minhas histórias, o que é bem difícil quando você não nasce herdeiro. Mesmo hoje, eu sinto que é uma série que me ajuda a desenvolver em vários pontos, me ensina coisas que, sinceramente, eu nem imaginava.