Divagando: Por que não somos perfeitos?

Dificilmente uma pessoa sai dizendo por aí que se acha perfeita. Seja porque ela sabe que isso vai gerar uma reação ruim dos outros, ou porque, quando perguntada de forma direta ou indireta, ela quer ouvir a voz da própria humildade dizendo que não está nem perto de ser perfeita, que tem muitos defeitos, mas que procura consertá-los sempre que possível.

É que existe essa lei não escrita e não pronunciada, não é? De que todo indivíduo que não se disser nem se mostrar tão humilde quanto o ideal que se tem de Jesus Cristo vai ser apedrejado e condenado à fogueira pelas outras pessoas, que se acham muito mais humildes do que o indivíduo em questão.

Porque a própria humildade também é uma vaidade (como o Leandro Karnal comentou nesse vídeo, usando o exemplo de Santo Antão), e, portanto, faz a gente acreditar que estamos mais próximos de sermos tão bons e tão sábios quanto o próprio Cristo, Buda, enfim, essas personalidades divinas nas quais se acredita. Claro que na maioria das vezes não é algo consciente, mas dizer “Eu sou humilde.” é sempre um autoelogio, não é? Você não se sente bem quando diz ou pensa que é humilde? Você não se sente melhor do que o outro quando diz que você aceita críticas e o outro não? Mesmo que você chore ou negue tudo o que dizem a seu respeito.

É que ultimamente eu tenho pensado, como escritor e artista, como essa coisa do orgulho é inevitável.

Até poucos anos atrás eu me achava bastante humilde também, principalmente por eu ter saído de uma fase ruim e nada humilde que me ensinou a aceitar críticas negativas — então, é óbvio, com o tempo eu fui me sentindo melhor do que os outros porque eu sabia aceitar essas críticas sem me abalar. Eu realmente fui e ainda dou o melhor de mim pra ser humilde quando recebo críticas e tal, porque entendi que de fato elas me ajudam a crescer, às vezes me dão até ideias melhores que eu não teria sem isso; mas nos últimos anos aconteceu tanta coisa na minha vida pessoal, e eu fiquei me sentindo tão mal, que certos tipos de críticas acabam me afetando como não me afetavam antes.

Quer dizer, até nas minhas primeiras memórias de vida tem alguém ou alguma coisa me dizendo que eu sou um fracasso. Um fracasso tanto social quanto nas coisas que eu faço. No colégio, os meus colegas achavam que eu não ia ser ninguém na vida, e eu tirei zero, zero, zero, zero e mais zero, sobretudo no meu último ano, só não repeti pelo privilégio do supletivo. Na faculdade, meu professor disse pra turma toda, na minha frente, que se eles não queriam apresentar um fracasso — indicando minha apresentação daquele dia — eles deveriam fazer isso, isso e isso (ficou uma aula inteira usando minha apresentação de exemplo do que não fazer, só porque eu e meu amigo fomos apresentar gripados, e um dos nossos colegas ficou interrompendendo/infernizando o tempo todo). Minha família também nunca pôs fé em mim não, até acham que eu estou mentindo quando consigo pagar minha própria passagem e ingresso pra um show de kpop. Meus amigos, pelo menos, acreditam mais em mim do que eu mesmo.

É engraçado como esse simples parágrafo pode soar bastante vaidoso. Dependendo de quem ler e do que quer interpretar sobre mim. Porque o simples fato de alguém compartilhar seus traumas pode soar como se eu estivesse inventando ou compartilhando meus problemas só pra conseguir atenção. Apesar de eu não sentir que é isso, que eu só quis dar o exemplo… e se for? E se eu inconscientemente tiver escrito tudo com uma expectativa oculta, ou camuflada de humildade, pra receber a atenção positiva que eu não tive nesses exemplos de antes?

Por isso que a questão de orgulho é tão complicada. Algumas pessoas acham que alguém com depressão, por exemplo, só se sente mal o tempo todo, que não restou nenhum ego nela. Mas eu mesmo já conheci muitas pessoas com depressão que conseguiam ter um orgulho maior do que o meu, mesmo que elas afirmassem veementemente que não. Esse orgulho pode não aparecer quando se trata da aparência e da personalidade da pessoa, mas ele aparece com frequência na arte, ou tende a dar as caras em qualquer coisa que a pessoa se esforce pra fazer e não é bem recebida.

Mas eu sou escritor e fotógrafo, portanto eu vou focar em falar de artistas por aqui.

Até hoje eu não conheci um artista que não tenha o ego sensível. É claro que a maturidade ajuda bastante a gente a melhorar isso, como se a gente selecionasse melhor o que vai ou não afetar, e como vai afetar a gente. Até os artistas mais inteligentes, mais maduros e mais velhos que eu conheço e acompanho têm seus exemplos de ego ferido. Tudo me leva a acreditar que humildade de artista é uma mentira.

Afinal, a arte é, majoritariamente, uma coisa pública. É claro que tem sempre aqueles artistas que preferem não dar as caras, e guardar em uma gaveta fechada à chave todos os poemas incríveis que escreve. Mas a maioria dos artistas sente essa necessidade, esse impulso de mostrar sua obra pro mundo, às vezes antes mesmo de finalizá-la.

E por que a gente tem essa necessidade, esse impulso de mostrar nossas artes pra outras pessoas?

Quando a gente expõe nossas artes desse jeito, a gente não expõe esperando vaias e tomates, certo? A gente espera os aplausos. A não ser naqueles poucos casos de corajosos ou malucos cuja arte está ali pra ofender, e eles não aceitam menos do que vaias e tomates — mas as vaias e os tomates, nesse caso, não seriam equivalentes aos aplausos? (Eu me identifico com ambos os casos.)

Eu comecei a pensar nisso tudo porque, uns dias atrás, eu pus O Gato de Nafisa gratuito na Amazon, e ganhei 1 estrela de avaliação.

Como eu ando me sentindo sinceramente um péssimo escritor, a primeira coisa que eu pensei quando vi essa avaliação foi: “Caramba, eu sou tão ruim assim que não mereço nem 2 estrelas pela gramática que eu sei? (E que é mais do que muita gente que ganha 5 estrelas por aí?)”.

Foi quando começaram esses meus pensamentos todos sobre o orgulho do artista, e como eu mesmo não consigo me livrar disso, nunca consegui, apesar de ter acreditado por tanto tempo que sim. Hoje eu sinto que foi pura ignorância da minha parte ser confiante dessa minha própria humildade, porque a ignorância é mesmo uma bênção, uma bolha flutuante que mantém a gente distante do tato áspero e duro das coisas, até essa bolha estourar. Assim, se eu já tinha reparado que o ego dos artistas é um pouco mais elevado e sensível, é porque eu vinha pensado nisso há um bom tempo; mas os pensamentos tendem a se aprofundar mais quando pensamos sobre nós mesmos. E, escrevendo este texto, com certeza é muito mais fácil eu dar exemplos sobre mim do que apontar um dedo pra alguém enquanto vou ter sempre outros dedos da mesma mão apontados pra mim.

Voltando ao baque da 1 estrela, o que se seguiu foi a voz da razão: Eu sei que, quando a gente consome uma obra de ficção, a gente espera, instintivamente, que essa obra seja perfeita. Que essa obra siga regras pré-estabelecidas de produção, que seja visualmente fascinante, que nos ensine alguma coisa e, acima de tudo, que saiba emocionar qualquer tipo de pessoa que a consuma.

Porque tempo é algo ainda mais valioso do que dinhero. A gente se ofende mais por perder nosso tempo do que perder uns trocados em um ebook, ou por volta de trinta reais em um serviço de streaming. Se a gente abre um livro, começa uma série nova ou vai dar um passeio em uma exposição, a gente espera ver coisas interessantes e emocionantes o bastante pra fazer valer esse tempo que a gente fica ali sentado ou caminhando, enquanto a gente poderia estar fazendo outras coisas, algumas nossas obrigações. Isso fora o fato de que as pessoas buscam na arte um escape da realidade, e, se a arte em questão não funciona como escapada, elas se irritam com a obra e com o autor por as ter irritado mais por perder tempo, e somado um problema, ainda que momentâneo, em suas vidas.

E eu estou mesmo me incluindo nisso. Porque sou do partido de que a gente não tem que perder esse tempo precioso com obras que não nos dão nada. Talvez por eu já ter tentado ler todo tipo de livro, por exemplo, me sinto cansado demais pra me esforçar em ler algo que eu não estou a fim de ler no momento, que eu sinto que é mais do mesmo e que não vai me ajudar em nada. Nem toda obra tem algo novo, ainda que cada autor tenha seu estilo próprio (se ele não plagiar outra obra na íntegra). Enfim, é por esse motivo que eu sou nota zero também em literatura brasileira e portuguesa. Não sou idiota o bastante pra achar que nossa cultura não produziu nada de bom nesse campo, pelo contrário, eu sei que a gente tem obras e artistas incríveis. É que dificilmente eu me interesso pelo tipo de escrita e enredo da literatura clássica do nosso idioma. Tenho e já li alguns livros que gostei muito; mas, apesar de eu gostar da trama de Dom Casmurro, por exemplo, eu não tive ânimo o bastante pra pegar o livro pra ler. Não li nem no colégio, por obrigação. Tem gente que se ofende e acha que isso não é valorizar a cultura nacional o fato de eu respeitar muito e só não me identificar com o tipo de texto; mas geralmente é o mesmo tipo de pessoa que diz que música boa é só bossa nova e música clássica, e que funk não é cultura e Pabllo Vittar é uma atrocidade.

Voltando aqui: É claro que a gente não pega uma obra pensando conscientemente “Eu quero que esse livro seja perfeito e o melhor livro da minha vida”, não. Mas a expectativa está ali. Se o livro não for perfeito, a gente espera que ele pelo menos não seja tão ruim quanto dizem, ou que a gente imagina que vai ser pela sinopse. A gente quer que o livro nos surpreenda, que desminta nossos preconceitos. Ou a gente não doaria nosso tempo pra ler mesmo avisados de que a obra pode não ser tão boa.

É que nem eu quando fui assistir Laranja Mecânica pela primeira vez: A vida inteira todo mundo disse que era a minha cara e insistia pra que eu assistisse logo. E o enredo tinha tudo pra me agradar, de fato. Então eu fui com aquela expectativa de que seria impossível esse filme ser diferente de perfeito pra mim.

No fim das contas, eu odiei à primeira vista; odiei mais ainda à segunda e à terceira vista, e não aguento ver esse filme sem ficar muito irritado.

Filme perfeito pra mim é Evil Dead. Que não teve nem de perto o mesmo orçamento, técnica e “profundidade” do Kubrick, mas me diverte e agonia suficientemente bem toda vez que vou reassistir.

Ou seja, de todos os aspectos que fazem a gente apreciar uma obra, o que mais conta é a potência do que essa obra faz a gente sentir.

Por isso que não adianta eu saber fazer um texto todo corretinho na gramática e não ter nada nele com que o leitor se identifique, que faça ele sentir algo, e de preferência algo de bom.

Porque tem isso também: uma grande maioria de pessoas só avalia bem uma obra quando essa obra as faz sentir bem. São poucas as pessoas estranhas que, como eu, entendem um sentir mal como maestria do autor em conseguir transmitir emoções tão intensas através das páginas ou das telas.

É por isso que, apesar de eu me sentir falho por não agradar nem o mínimo alguém com o meu conto, eu estou aqui há tempo demais pra saber que o deslumbre estético de um texto não é nada se a trama não tem profundidade e sintonia o suficiente com o leitor. E sintonia é questão de sorte também, aparentemente.

Sejamos honestos: Todo mundo já passou pela situação de ver uma pessoa fazendo um trabalho raso, mal feito, muito inferior ao seu, mas essa pessoa ser a mais conhecida e elogiada do seu meio, mesmo quando todo mundo sabe e comenta que a qualidade do que Fulano faz é ruim.

Mas essa pessoa tem carisma, e, dependendo do que a pessoa faz, esse carisma transborda instintivamente pras obras dela. Às vezes a pessoa tem até defeitos terríveis de caráter também, mas ela carrega aquele quê que faz todo mundo simpatizar com ela e, consequentemente, com o que ela faz. (“Fulano cozinha tão mal, mas ele é tão legal, tão humilde que eu não consigo não comer e incentivar dizendo que tá bom. É só ele ir se desenvolvendo com o tempo. Não quero destruir os sonhos dele.”) É muito difícil não ver um autor e sua obra como uma coisa só.

Fora que a espontaneidade é um tipo de apresentação muito mais apreciada socialmente, e o carismático se mostra espontâneo. Por que a maioria das pessoas se atrai pelas garotas que já são populares e falantes no colégio, e apenas poucos se interessam em conhecer as garotas retraídas que sentam no fundo da sala e ninguém sabe o nome?

Não tenho moral pra afirmar uma resposta, mas vou deduzir que, além de outros fatores, como não saber lidar com o diferente, isso também parece ter a ver com as pessoas terem muito medo do silêncio e de coisas complexas demais. Silêncio é constrangedor, e deixa a gente sozinho com nossos próprios pensamentos; e coisas complexas demais fazem nossos neurônios pegarem fogo, e a gente se sente burro quando não entende o que elas querem dizer. Por fim, quem é carismático e espontâneo parece sempre se mostrar mais, portanto se cria essa ilusão de que a gente sabe mais sobre uma patricinha do que sobre a gótica do fundão. Daí a patricinha parece mais confiável, e a gótica parece estar sempre planejando fazer rituais com o sangue de alguém. A gente também prefere e se sente mais seguro andando de dia do que de noite, mesmo em lugares sem crime algum.

É claro que a imagem do artista não é o único fator que influencia alguém a gostar de uma obra ou não. Estou apenas dizendo que tem certos tipos de características chamativas de um autor que passam às obras.

Se a gente for ver os livros de ficção em destaque nas livrarias, tirando os clássicos e os acadêmicos, quanto mais fácil, leve e clichê for uma obra, mais ela vai fazer sucesso. Quem for mais velho deve se lembrar de quando a saga Crepúsculo foi lançada, e como surgiu muitos outros livros sobre vampiros jovens e bonitões, além da comoção que esses livros geraram, criando novos leitores que antes nem aguentavam ver um livro por perto sem morrer de tédio. Anne Rice nunca explodiu tanto quanto Stephenie Meyer, e é claro que uma tem uma narrativa mais complexa do que a outra. Eu lembro que nos anos 90 e 2000 gostar de Anne Rice era algo de nicho, principalmente entre rockeiros, góticos e adolescentes mais descolados, que queriam propositalmente algo diferente e profundo. Anne Rice fez muito sucesso com as Crônicas Vampirescas, mas, hoje em dia, parece que mais gente leu e assistiu Crepúsculo do que leu e assistiu Entrevista com o Vampiro. (E antes que alguém surte com o que eu acabei de dizer, gosto das duas. É só fato que até hoje se encontra até mais produtos sobre Crepúsculo do que sobre as Crônicas Vampirescas, por exemplo.)

Mas é possível que eu tenha essas impressões por me sentir excluído do rolê também. Porque escuto desde sempre que minhas estórias são densas demais e por isso as pessoas não se interessam em lê-las, que eu tenho que achar um nicho muito específico que há mais de uma década eu não acho de jeito nenhum. E isso em todos os meios literários em que eu já estive. Até ano passado eu ouvia quase diariamente que, pra vender, eu deveria seguir a receita que os livros de 5 estrelas fazem: temas leves, casais fofos pra deixar os corações quentinhos, cenas de sexo românticas, zero traições, finais felizes, reflexões diretas e simples, etc. Eu também consumo esse tipo de obra, que fique claro (principalmente os mangás bonitinhos).

É só que eu não consigo escrever assim. Eu tentei. Meus Dois Amantes era pra ser isso. Mas eu claramente falhei em fazer uma estória tão leve quanto esperavam de mim. Eu até tive outras ideias, mas essas ideias sempre pareciam que já estavam escritas em algum lugar e por pessoas que fazem isso de maneira mais sincera e caprichosa do que eu faria, então pra mim não faz sentido eu fazer mais do mesmo sem nem ter o dom pra isso. Geralmente, eu escrevo aquilo que eu gostaria de ler/ver e não encontro, ou o que mais gosto de consumir como entretenimento. E eu claramente gosto de coisas incomuns, não precisa nem serem coisas reflexivas e profundas.

Mas eu me pergunto bastante se essa minha resistência em me conformar (no sentido de me colocar dentro do que é o mais comum) é orgulho também. Porque soa como se fosse. Por que eu só não consigo ser como os outros e cortar de vez esse problema da minha vida? É o meu instinto mesmo, ou é a minha vaidade em ser diferente? Ou os dois?

É por isso que, principalmente hoje em dia, eu reviso pra outros autores e já vou pedindo desculpas caso tenha ofendido. Porque eu sei que é sempre duro a gente ouvir que o nosso esforço, que custou tanto suor, fruto do nosso próprio tempo precioso, não está tão bom quanto a gente sentia que estava.

Mas uma coisa que eu notei, nessas revisões e em grupos de escritores (então só vou falar das minhas impressões pessoais desse meio agora), é que a escrita faz a gente se sentir consciente ou inconscientemente mais intelectual. Não é? Talvez porque um texto seja, praticamente, uma equação de palavras. É complicado de fazer, tem muitos detalhes com os quais a gente deve se preocupar, tem regras de gramática, a gente tem que pesquisar até sobre medicina pra escrever, etc.

Acontece muito de eu revisar uma obra e as pessoas se aborrecerem por eu apontar um erro e explicar o porquê de estar errado, dando fontes e tudo que encontro pra ajudar, porque faz com que sintam que eu sou extremamente arrogante e estou tentando diminuir a inteligência delas. Minha vida de revisor foi, na maior parte, como esse vídeo aqui do Porta dos Fundos. Eu tento ser formal nos comentários de revisão, e até ser fofo ou brincar um pouco pra descontrair, mas o simples fato de dizer “Aqui tá errado.” faz os autores lerem como “Você é BURRO! Como você consegue errar uma coisa TÃO IDIOTA?!?! Como você não consegue ser tão inteligente quanto EU?”.

A parte que mais me dá problemas com revisão não é a gramática, porque todo mundo sabe que regras de gramática pré-existem antes de eu apontá-las e nomeá-las, mesmo sendo difíceis. É a parte da teoria narrativa. Justamente a parte que mais entendo em escrita criativa, e muita gente começa a escrever suas histórias de ficção sem ter ideia de que existem termos e técnicas pra isso também (tanto que, quando eu comento que tal coisa é um deus ex machina, a pessoa que nunca ouviu falar acha que eu estou inventando, ou vai dar uma olhada na primeira frase da Wikipedia já no intuito de poder me contestar).

A questão é que a teoria e a técnica narrativa falam diretamente sobre o enredo e os personagens em si, e não sobre a estrutura gramatical do texto. Muitos autores escrevem com o coração mesmo, chamam seus personagens de filhos, descrevem cenas baseadas em testemunhos e experiências reais e marcantes que eles tiveram, ou criam uma trama toda baseada nos prazeres que eles não têm na vida real e colocam na ficção pra ter esse sabor. Então, se eu digo que um personagem não está convincente, ou que tal evento é inverossímil, esses autores entendem que eu estou menosprezando ou sendo cruel com os sentimentos e as experiências deles. Ninguém quer que outra pessoa fale mal dos seus filhos ou descredibilize suas vivências, não é?

Voltando à minha própria desumildade, eu publiquei O Gato de Nafisa já me justificando no Instagram, sobre ser apenas um conto e que eu fiz em um período difícil, quando um dos meus gatos morreu, blá blá blá. Eu escrevi essa estória com as minhas emoções da época, e tendo usado todo o meu intelecto pra poder desenvolver no texto a expressão dessas emoções da maneira como eu gostaria, além de eu ter pensado em outras referências, críticas, e por aí vai. Então é, também, um conto pessoal.

Mas a pessoa que leu o conto e deu 1 estrela provavelmente não sabe de nada disso. Tanto que essa avaliação veio depois de eu colocar os livros de graça na Amazon e ele ser divulgado em lugares fora da minha bolha. Então, em primeiro lugar, esse leitor não tem como saber que é um conto feito por um motivo tão íntimo e específico.

Só que, mesmo se o leitor soubesse, tudo isso não importa.

Porque, primeiro, nunca vai ser importante pro outro quanto é pra mim, independente da quantidade de explicações que eu dê. Porque eu tenho o sentimento da motivação, e o leitor tem apenas as emoções sugeridas pelo resultado.

Segundo, é que é um pouco mais difícil ter empatia e interesse por pessoas mais distantes de nós, sobre as quais a gente não sabe nada e não vê atrativos pra tentar conhecê-las. A internet está aí de prova de que, se uma figura pública demonstra sofrimento, uma parcela das pessoas vai se emocionar junto, outra vai tentar fazer essa pessoa sofrer mais, e outra não vai estar nem aí pra essa história toda. Eu não acredito, portanto, que se eu tivesse colocado no começo do ebook minhas razões pra ter escrito esse conto, o leitor mudaria a opinião dele sobre o que ele sentiu pela trama em si.

Terceiro, então, é isso: nossas emoções e experiências pessoais, como artistas, não são elementos que garantem que as nossas obras vão ser excelentes e emocionar os leitores facilmente. É o que eu sempre digo em revisão também: A gente pode sentir as coisas na maior intensidade e derramar tudo em palavras; e, porque a gente vê as palavras descrevendo o que a gente sente, a gente acha que todo mundo vai sentir a mesma coisa quando ler. Não é o caso. O que ajuda a tornar um texto mais emocionante não é a espontaneidade das nossas palavras, e sim, exatamente, o cuidado que a gente tem em procurar palavras, sons, texturas, cores, etc., que descrevam de maneira sensível (perceptível) pros leitores o que eles podem sentir. Ao mesmo tempo em que todo esse trabalho não passa de uma tentativa. Se eu digo que “Eu amo muito o meu gato.”, você sabe que eu acredito que o amo muito, mas você não compartilha comigo a intensidade desse sentir, não recebe as mesmas sensações físicas desse amor que há em mim. É por isso tudo, também, que eu foco em estudar mais essa parte de teoria narrativa, filosofia da arte, essas coisas, pra tentar expressar melhor o que eu quero, pra fazer o leitor sentir também. Eu não faria o Eric da Roads of Trust ser tão fofo e coitado de início se não quisesse que as pessoas chorassem pelo destino dele.

Mas, é claro, não importa como você escreve, o quanto você estude e que carisma você tenha, você sempre vai ter alguém te dando uma única estrela.

Porque não existe uma obra que consiga mexer universal e inevitavelmente com todo mundo. É que nem — voltando aos clássicos brasileiros — quando a gente sabe que Machado de Assis é muito bom, muito sábio no que fazia, mas a gente não sente vontade de ler, ou lê e não sente nada, porque a gente não se identifica com as histórias dele. Às vezes, também, acontece de o leitor tentar se entreter em um dia muito ruim, daí tudo que ele consume parece ruim porque é, não pela interpretação dele. E quando eu era mais novo, por exemplo, eu achava um porre esses filmes de brucutus da Sessão da Tarde, pensava que O Exterminador do Futuro era só mais filme de macho que gosta de ver porradaria, sem nada emotivo nem reflexivo nisso. Um dia, do nada, passou Fuga de Los Angeles de madrugada em algum canal de TV aberta e, mesmo sabendo que o enredo do filme não é grande coisa, eu me diverti tanto assistindo que acabei usando o Snake Plissken como referência de personagens, e tenho até uma action figure dele aqui no quarto. Foi aí que eu reassisti O Exterminador do Futuro e fiquei muito apaixonado, virou um dos filmes mais marcantes da minha vida, a ponto de eu dizer que quero a música de abertura no meu casamento.

O mais curioso de toda essa minha reação com a avaliação de O Gato de Nafisa é que: no ano passado ou retrasado, não lembro bem, um dia eu fui conferir as avaliações dos meus livros na Amazon e vi que, na mesma semana, tinham dado 1 estrela pra todos os meus livros disponíveis na época. O máximo de reação que eu tive foi me perguntar se isso foi coincidência, se a pessoa fez de maldade, ou se ela errou mesmo (porque já ouvi falar de gente que acha que 1 estrela é a nota máxima, de maior qualidade). Como dificilmente esse pessoal de 1 estrela posta comentário, deixei pra lá. E os livros todos que escrevo com o heterônimo de Gia Hurts também têm 1 estrela, mas é o caso de que eu escrevo com temas polêmicos já sabendo que o mais provável é desgostarem.

Enfim, tudo isso me faz pensar que, na verdade, eu só me senti mal pela 1 estrela agora porque eu já tenho me sentido mal com a minha escrita, e me sinto mal com a minha escrita por consequência das várias coisas pessoais que passei nos últimos tempos. Eu perdi a minha confiança. O que é ruim. Porque eu tenho tido dificuldade pra escrever qualquer frase que seja, já que eu vou digitando e julgando mal minhas próprias palavras. Só eu sei quantas vezes já abri aqui o Medium, vomitei um monte de palavras e limpei tudo. Mas eu tenho tentado me inspirar, ler e estudar bastante pra achar uma solução.

É por isso, também, que quando eu reviso e um autor defende sua obra, eu entendo. Mesmo que eu retruque. E digo que, no fim das contas, ele pode realmente deixar como achar melhor, porque é ele quem tem que saber como quer se expressar, como quer ser visto pelo seu público.

Eu também achava, até certo tempo atrás, que toda obra deveria ser autossuficiente, que o autor não deveria sair de trás das cortinas pra explicar sua peça, mas as minhas experiências e a de colegas escritores me fizeram ver que isso é inevitável: que, dependendo do caso, deixar nossas obras unicamente à interpretação do público (que pode ser diverso, mas também intelectual demais, ignorante demais, militante demais, etc.) pode acabar fazendo com que nos interpretem errado como indivíduos, ou disseminem as ideias erradas deles usando nossas artes. Sabe aquela história de que o cliente tem sempre razão? Bom, quem já trabalhou com clientes sabe que nem sempre eles têm razão, que às vezes eles surtam por entender as coisas à sua maneira, ou querem só humilhar a gente mesmo.

Afinal, tudo o que a gente lê, assiste, ouve e joga, a gente lê, assiste, ouve e joga com a nossa personalidade, com as nossas experiências de vida. É por isso que eu não posso esperar que os leitores leiam minhas estórias da mesma forma como eu as escrevo.

Acho que este texto enorme é uma tentativa minha de resgatar um pouco da minha autoconfiança, direcionar meu orgulho e arrogância lamuriosos pra um lugar melhor, sei lá. Por mais que eu prefira divagar sobre o mundo por meio da ficção, eu sentia falta de poder dizer certas coisas por mim mesmo. Porque é sempre difícil dar a cara a tapa e falar publicamente nossas opiniões, não é? E os adjetivos negativos que acabei recebendo com o tempo me fizeram sentir fraco demais pra falar em voz alta de novo.

Então, eu admiro muito mesmo quem chegou até aqui, e se permitiu ser bolinha de ping-pong nesta rodada extensa dos meus pensamentos. Obrigado por me ouvir.

Vou tentar tagarelar mais e retormar os artigos que eu fazia sobre escrita. Torçam por mim.

--

--

𝐌𝐄𝐌𝐎𝐑𝐈𝐀𝐋𝐀𝐃𝐃𝐑𝐄𝐒𝐒

𝐊𝐘𝐑𝐀𝐍 // 𝐄𝐬𝐜𝐫𝐢𝐭𝐨𝐫 𝐩𝐞𝐬𝐬𝐢𝐦𝐢𝐬𝐭𝐚 & 𝐑𝐞𝐯𝐢𝐬𝐨𝐫 𝐩𝐞𝐝𝐚𝐧𝐭𝐞 — http://memorialaddress.org