Pensando alto: “É melhor não escrever”

Eu tenho voltado a ouvir meus discos de vinil.

Se por um lado o preço dos LPs está inflacionado por causa da demanda, por outro eu acho ótimo saber que, mesmo com tanta tecnologia disponível, até mesmo a nova geração tem se interessado pela experiência de comprar um disco novo, admirar a capa, colocar o disco na vitrola e ouvir em caixas de som enquanto lê o encarte.

Existe todo um processo sensorial e psicológico envolvido nisso, que acompanha a música a ser ouvida. Até porque as músicas podem ser removidas dos streamings a qualquer momento, e a gente perder o acesso sabe-se lá por quanto tempo, ou pra sempre. Me faz lembrar de como eu amava comprar CDs, ir na Fnac (RIP), colocar os fones e descobrir bandas novas ali mesmo, com meus amigos. Ou quando eu ia lá com a minha mãe passar mais de hora no meio dos livros. E como tudo isso envolve mais coisas do que ter o CD ou o livro em si, mas o próprio prazer do tato, das companhias, da surpresa de cada dia.

E é porque eu sempre fui viciado em internet, sempre amei tecnologia, e gosto de me inteirar dos assuntos mesmo nunca tendo pretendido trabalhar com isso. Sou a pessoa que por anos deixou o computador 24h ligado, que encontrou toda uma vida na internet que eu não tinha no mundo “real” (quando ainda se fazia essa separação), já que uma pessoa como eu num colégio de padres e num bairro de classe média que se achava elitista conseguia mais bullying do que amizades. Mas, além de encontrar pessoas de várias partes do mundo com as quais eu me identifiquei, eu também descobri o próprio mundo. Me aprofundei no meu interesse em cultura asiática, consegui andar pelas ruas de Amalfi com o Google, entendi minha identidade de gênero e minhas questões de saúde mental antes de os termos se popularizarem no Brasil, aprendi novos idiomas e, por fim, tive acesso a todo tipo de material necessário pra minha escrita. Até gramática eu fui aprender graças à internet, porque no colégio eu era péssimo nisso, mesmo escrevendo livros inteiros.

Então, o que mais me prendeu ao computador foi a escrita. Inicialmente eu escrevia tudo em cadernos e digitava depois, mas eu sempre escrevi muito, e é claro que em algum momento isso não compensava mais. Também só fui comprar uma máquina de escrever anos depois, e ganhei outra que era do meu avô. Acaba que essas, embora sejam maravilhosas, eu não uso porque fazem muito barulho, eu sou o tipo de pessoa que só funciona à noite (especialmente pra coisas criativas), e não moro sozinho. E, bom, se a escrita sempre foi uma parte intrínseca em mim, obviamente que meus computadores eram indispensáveis no dia a dia.

Até que eu tive um burnout.

No auge da pandemia, vendo que meus freelas de fotografia se tornaram impossíveis pra conservar a minha saúde e, principalmente, da minha família, eu me convenci finalmente de que só me restava investir nas publicações das minhas histórias em ebooks. Monetizar o que eu nunca quis monetizar.

Porque eu sempre soube que ia dar merda.

Desde que eu me lembro, desde que eu aprendi a escrever, a escrita sempre foi essencial pra mim. Porque eu sempre fui hiper criativo. Não me recordo de nenhum momento da minha vida desde a alfabetização que eu não tenha escrito nem me interessado por livros.

Curiosamente, eu nunca soube o que responder à pergunta:

“O que você quer ser quando crescer?”

Tenho quase certeza de que eu não falava que queria ser escritor — tanto que, no último ano do colégio, meu professor perguntou o que eu queria cursar na faculdade, e eu estava entre História, Filosofia ou Psicologia.

Apesar de que o meu sonho sempre foi ser escritor acima de qualquer coisa.

Porque, desde que eu me lembro, eu sabia que ser escritor não dá dinheiro, que artistas tendem a morrer na miséria e só serem reconhecidos depois de mortos. Minha publicação numa coletânea por editora, em 2010, não me abriu nenhuma porta. Conhecer pessoas de dentro de editoras não me deu sequer uma oportunidade. Pouquíssimos dão sorte, já que, no fim das contas, é sempre uma questão de sorte: milhões de pessoas tentam conquistar algo, mas apenas uma dúzia consegue, e a maior parte dessa dúzia consegue porque já tem alguma renda segura que possa investir.

Daí que eu optei, por muitos anos, não levar a escrita pro profissional. E, conforme eu fui crescendo e vendo amigos escritores tentando, tentando muito e não conseguindo, pelos mais diversos motivos, eu tinha tomado a decisão convicta de que era melhor não vender meus livros, porque a escrita sempre foi o meu escape antes de qualquer coisa. Geralmente os meus maiores livros são escritos em períodos intensos de depressão, surgia uma única frase na minha cabeça que acabava se transformando numa grande história. Eu costumo dizer que fico na minha caverna, escrevendo loucamente, até dormindo pouco porque fico ansioso pra escrever mais, só consigo pensar na história, até cansar — mas, quando termino, me sinto aliviado de tudo, renovado, animado, e consigo sair da caverna de novo.

Ainda assim, a necessidade me levou a escrever Meus Dois Amantes. Tanto que é meu primeiro romance com personagens nacionais. Li vários ebooks antes pra entender o que, aparentemente, atraía as pessoas numa obra, e somei com ideias que eu já tinha de muito tempo e só estavam esperando o momento de acontecer. Afinal, muita gente só falava bem da Amazon, que estavam ganhando mais que dois ou três salários mínimos por mês vendendo livros hot.

Curiosamente, mesmo nesses anos de publicação, e de Meus Dois Amantes ser até que conhecido nesse nicho, desde a publicação do livro em 2021, até hoje eu só ganhei um salário mínimo com ele. Teve dois meses em que ganhei uns R$250 e cento e poucos reais, mas depois disso só foi abaixando até chegar nos centavos de novo. Por não fazer mais diferença, passei a colocar mais vezes o livro de graça pra chegar a outras pessoas, e porque foi a fórmula que me fez ganhar os R$250 daquela vez, mas as pessoas preferem piratear em PDF mesmo assim, ou, se lêem Meus Dois Amantes e as duas sequências, não se interessam em ler mais nada meu.

É por isso que desde a publicação de Meus Dois Amantes eu fiquei bem paranoico. Eu não tinha mais uma fonte de renda, então eu tive que me aventurar num lugar que era novo e até desconfortável pra mim, por causa da minha fobia social, e porque pra ser lido você tem que sorrir até pra quem fala mal de você. Tive experiências bem ruins com pessoas nesse meio, que vão desde cópia descarada de cena minha até stalker com quem falei só uma vez na vida já querendo o meu endereço (o que obviamente piorou a minha saúde mental, que já estava decadente por inúmeros fatores), entre outros problemas que não vale a pena mencionar. E tudo isso enquanto eu me esforçava em ultrapassar meus próprios limites de caráter introvertido e de ansiedade social, ao mesmo tempo em que ficava desesperado por não ter mais de onde tirar dinheiro pra fazer divulgação, por não saber o que postar no Instagram todos os dias, por não ter um livro pra publicar todos os meses, por não ter ideias que as pessoas querem ler. Afinal, por mais que as pessoas gostem de Meus Dois Amantes, eu ouvi muito sobre o que eu não deveria ter feito: Faltou foto de personagem na capa, então tive que mendigar pra uma amiga uma ilustração, a ilustração é linda mas, que pena, ainda não era a foto de uma pessoa real e sedutora; ah, porque trisal não pode, não gostam de ler trisal, e traição menos ainda, especialmente essas cenas de sexo que não envolvem romance; o livro tá cheio de erros, não pode escrever diálogos com aspas, quer que eu te ensine?, etc.

Óbvio que eu já me frustrava por ver cada esforço meu sendo rejeitado, mesmo que eu estivesse me empenhando em seguir a receita de sucesso que me passavam, e isso atrapalhava minha escrita, porque todas as ideias que eu tinha não eram compatíveis com CEOs de abdomens sarados nas capas dos meus livros. E não falo isso com desprezo ou prepotência, porque cresci no meio das fanfics smut, tenho uma prateleira da estante inteira dedicada a livros eróticos. Mas o que eu consigo conceber na minha maior sinceridade como artista é tudo isso em outro estilo. Daí veio janeiro de 2023, quando eu publiquei Love At Midnight, e o tombo foi tão grande e dolorido que eu entendi exatamente tudo o que eu precisava entender — embora isso seja uma solução pra nada, e eu demorei pra chegar neste momento de “ok, não posso resolver o que está além do meu controle”.

Love At Midnight foi um desses livros que eu escrevi nesses meus momentos de caverna, com o adicional de estar passando por um luto. Era pra ser um conto fofo hot de Natal com um quê kyranesco, que é justamente o período histórico, mas eu gostei tanto dos personagens e, por fim, as coisas ruins começaram a acontecer na minha vida, que eu decidi estender a história pra me acompanhar durante as dificuldades. O que me fez muito bem. Apesar disso, Love não é um livro sobre morte, até porque eu escrevi também tentando colocar aquilo que me falavam que era o certo colocar numa história pra vender na Amazon. Tem hots românticos e final feliz com direito a extra e família com filhos, por exemplo. Então é óbvio que eu quebrei muito a cara quando eu vi que esse livro não interessou a ninguém, praticamente. E se eu já estava ficando bem maluco com outras situações, dentro e fora da internet, ali eu sinto que comecei a quebrar de vez.

É claro, é terrível e ridículo um artista vir na internet e ficar choramingando sobre seus insucessos. Soa muito mais como se a gente só culpasse o mundo inteiro em vez de nós mesmos, principalmente neste período em que a meritocracia impera. Por um lado tem gente que, sim, se aproveita disso pra conseguir algo sem fazer esforço; por outro, eu, com a minha própria pele, entendo que às vezes a gente só precisa falar sobre tudo isso publicamente, o que não significa que aqui, no caso, eu esteja implorando por alguma coisa. Até porque quem implora espera conseguir alguma coisa, e eu já abri mão disso.

Por entender como o mundo funciona hoje, eu nem espero que este textão seja lido.

Enquanto eu tentava entender onde eu falhei em Love At Midnight, alguns amigos próximos, também escritores, começaram a relatar baixas nas leituras e desânimo com as publicações também.

Por outro lado, o número de lançamentos de ebooks que aparecia no meu feed era cada vez maior.

Quando você está inserido num meio onde há pessoas bem-sucedidas (ou aparentemente bem-sucedidas) na mesma coisa que você também faz, qualquer deficiência ou nulidade nas respostas ao seu trabalho sugere que a culpa é exclusivamente sua.

Principalmente porque, de novo, a ideia meritocrática é aquela que governa a cabeça da maioria das pessoas hoje, e parece óbvio que, pra muita gente, você só não consegue algo se você não se esforça o suficiente pra isso. Eu tive esse pensamento, eu ouvia o tempo inteiro que era porque faltou eu fazer isso ou aquilo, ou não fiz direito — e comecei a olhar pras minhas coisas e as coisas dos outros, me sentia o pior escritor do mundo, um merda escrevendo um monte de merda, incapaz de conceber algo que interessasse às pessoas, mesmo se um ou outro viesse me mandar DM com elogios. E quando a sua arte é tão conectada com a sua personalidade, ser um fracasso na escrita se torna ser um fracasso como indivíduo.

Mas isso não estava acontecendo só comigo. Pessoas próximas vinham desabafar a mesma coisa, seja na área de escrita, de outras artes, e até mesmo de trabalhos além da área criativa.

A gente não tem mais tempo livre.

Esse é um grande debate que tenho acompanhado de uns meses pra cá, provavelmente desde que detectei meu burnout e os sintomas físicos começaram a aparecer.

A gente está online 24h/7. A qualquer hora do dia ou da noite uma pessoa aparece no seu WhatsApp exigindo atenção ou um trabalho pra amanhã, e você tem que responder, ou isso gera confusão, mesmo nos finais de semana. Além disso, todo profissional precisa ser criador de conteúdo, ou mal consegue performar bem no trabalho, já que as redes sociais são a principal fonte de divulgação, e quem mostra o rosto cheio de carisma, ostentando isso ou aquilo, é sempre quem ganha mais likes.

Eu comecei a perceber e a me aborrecer com isso logo na fotografia, porque fotógrafos tendem a não querer aparecer tanto quanto os modelos, mas os meus colegas começaram a gravar stories e reels o tempo inteiro, mostrando os próprios looks, testando equipamentos, e conseguindo bem mais seguidores com isso. Na escrita existe uma maior aceitação do anonimato, mas os grandes escritores da atualidade raramente são anônimos, e raramente não têm um Instagram. Você só pode ser um artista sem depender da internet se você já é o Stephen King.

Então, se existe muita gente criando conteúdo, a gente está aqui consumindo esse conteúdo o tempo todo. Mesmo quando eu abria o Instagram pra responder uma mensagem, por exemplo, eu tinha que ver posts comemorando conquistas, ou listas dos livros mais lidos do mês, ou dicas de como ser um escritor de sucesso.

Veja bem: Eu nunca fui o tipo de pessoa que ficava se comparando com os outros, e sempre repeti nas minhas revisões que cada pessoa está num nivel diferente e tem um estilo diferente, a minha trajetória de escrita foi única, a de Fulano foi outra, eu sei que as pessoas também têm conquistas porque lutaram do jeito delas pra isso, portanto não fazia sentido na minha cabeça fazer comparações. Mas, durante a pandemia, tanto eu quanto outras pessoas entraram nessa de vender livros por precisar de grana, e essa competição (inconsciente pra maioria) se tornou ainda maior do que já era. Enquanto antes os livros demoravam anos pra serem escritos, hoje ou você lança um livro por mês ou a cada dois meses, ou as pessoas se esquecem de você, se cansam de te esperar, acham que você não é comprometido, etc.

Além disso, a pandemia passou e todo mundo voltou a trabalhar, a sair de casa. Mas as pessoas não deixam de olhar o feed infinito das redes todos os dias, os vídeos novos do Youtube que levam a recomendações incessantes, e depois elas vão e pegam o livro dos dois autores favoritos delas pra lerem um pouco. Mas elas precisam ler rápido porque elas também querer ler o livro de outros autores, enquanto que mais autores já estão lançando livros novos. Então os autores favoritos viram prioridade, e a escrita desses livros precisa ser bem objetiva e sem muitas enrolações pra chegar no hot, porque ninguém mais tem tempo. Afinal, amanhã, já vai ter um monte de conteúdos novos pra consumir. Enquanto isso, os influenciadores digitais e coachs dizem que a gente tem 24h, que é possível a gente fazer mais do que já faz. Você deveria estar malhando também e frequentando palestras, além de empreender. Já parou pra estudar criptomoedas? Mas agora é janeiro, tem que comprar o material das crianças, viajar com a família, vacinar os pets, voltar pro escritório, etc.

É por isso que hoje estamos no auge dos transtornos mentais. Parece que a gente não tem o tempo que as outras pessoas têm, nem o talento nem o dinheiro necessários pra chegar onde as outras pessoas já chegaram. A gente não tem nem mais a capacidade de manter o foco. Um vídeo de mais de um minuto se torna tedioso, alguém falando num TikTok precisa colocar outro vídeo de receita embaixo pra prender sua atenção, é bom sempre acelerar na velocidade máxima, por que diabos o Kyran está escrevendo um texto deste tamanho reclamando da vida? É um texto que nem faz a gente se sentir bem, porque principalmente depois da pandemia a gente se viciou em dopamina. A gente precisa de conteúdos que, além de abreviados, nos dão prazer, que a cada vez que a gente role um feed a gente veja mais uma fofoca de blogueira comprando bolsas que valem muito mais que uma dúzia de casas populares, vídeos de bichinhos, de viagens, de comidas, de lançamentos de livros que a gente adiciona na lista pra ler e comprar e não consegue abrir nem metade, e vai deixando eles esquecidos na estante porque nunca tem tempo de ver.

Nessas condições, não é nem surpresa que o Brasil tenha perdido quase 7 milhões de leitores em quatro anos. Eu mesmo tenho lido bem menos que em toda minha vida, principalmente depois do burnout, porque não consigo me concentrar, até os livros que me animam me dão uma exaustão mental que me impede de continuar, e, assim como não consigo ler sem olhar o celular, mal consigo ver filmes e coisas na TV sem ficar jogando ou olhando as redes.

No final do ano passado, eu tive a sorte de conseguir entrar numa aula gratuita da Rita Von Hunty aqui em Brasília. É claro que ela falou de História, capitalismo e meritocracia. E ela olhou nos nossos olhos e disse que: a gente vive num sistema em que a gente não pode ter horas livres, o ócio não é bem visto, a produtividade idealizada é exigida o tempo inteiro e, se você não consegue, se você entra em burnout e depressão, toma aqui seu remedinho, porque o problema é você. É melhor você acreditar que você é o problema, o defeito dessa grande máquina imparável, do que perceber o quanto essa máquina é falha, destrutiva e autodestrutiva.

Depois de ouvir alguém verbalizando essa conclusão com todas as letras, somando com as notícias que tenho visto, eu entendi que não posso lutar, principalmente sozinho, contra tudo isso.

Então, pra que escrever?

“É melhor não escrever.”

Essa frase tem se repetido na minha cabeça desde que publiquei Meus Dois Amantes.

Antes de abrir uma conta no Instagram inteiramente dedicada aos meus escritos, eu escrevia e postava qualquer coisa que me vinha à mente no meu blog pessoal: desde a Roads of Trust a contos, poemas, prosa-poética, crítica literária, crítica de cinema, artigos de escrita e afins. Acredito que só meus amigos liam. Quando eu tinha alguma história maior, como O Príncipe E O Menestrel ou Infamous, eu publicava na Amazon, mas nunca fiz esforço em divulgar. Minhas únicas limitações nas minhas ideias eram aquelas que iam contra coisas que eu acredito, em especial a minha responsabilidade de não propagar mais preconceitos, romantizações e afins. Então isso de “É melhor não escrever” nunca me ocorreu. E é porque as pessoas sempre me disseram que não iam ler minhas histórias por serem pesadas demais, que eu não ia conseguir leitores escrevendo sobre esses temas. Mas era meu estilo já pesquisado, trabalhado, definido e prazeroso pra mim. Claro que me incomodava quando falavam na minha cara que não iam ler o que eu escrevi, porém, ainda assim, eu não sentia que precisava aprisionar numa masmorra todas as minhas ideias.

De 2020 a 2024, eu escrevi mais do que publiquei. Afinal, eu só cedi em publicar mais ativamente minhas coisas na Amazon por questões financeiras, então eu coloquei um hiperfoco em tentar criar histórias dentro da receita que me passavam e do que eu via bombando na estante LGBT+. Mas a minha mente funciona de um jeito diferente, eu não sou um pária social por escolha própria, por satisfação pessoal — então, se o que vende é qualquer livro de CEO gostosão, todos os caminhos que a minha mente fazia levavam o CEO à ruína com crítica ao capitalismo e alguma relação tóxica com o par romântico porque eu definitivamente não vejo CEOs como coisas boas na sociedade. Ok, não pode ser CEO, e a ideia do piscineiro? Eu vi uma foto de um cara na piscina e pensei em fazer algum conto super hot com um limpador de piscinas. Mas eu achei tão sem graça. O que ia acontecer? O piscineiro ia olhar pro dono da casa, os dois iam sentir tesão, um ia ficar apalpando o saco na frente do outro, eles iam transar loucamente e… e aí? Seria um conto completamente pornô, no fim das contas. Mas é o que vende, tentei escrever. Fiquei enjoado logo no começo, antes mesmo de começarem os flertes. Não tinha sentido algum, mal tinha enredo, sequer emoção, não sei fazer isso, tem quem faça melhor. Mas e se o piscineiro fosse meio trambiqueiro? Afinal, ‘tá no meu currículo escrever sobre gays trambiqueiras. Ele poderia roubar o dono da casa, e ameaçar denunciar o cara pra esposa. Espera, não, não pode ter traição, as pessoas não gostam de ler sobre traição. Tem que ser a transa de dois caras solteiros, com um quê de romance, os dois têm que ser saradões, bem dotados, e o final tem que ser feliz. Bem Xvideos. Mas se for Xvideos demais, não vão ler também porque é putaria sem amor. Mas essa cena combina melhor com a cena de uma história antiga que eu tenho que reescrever, e no fim das contas eu pus o piscineiro é lá e fiquei sem conto. E eu cheguei a reescrever boa parte dessa história, mas ficou muito grande, “ninguém vai querer ler” algo desse tamanho.

Bom, eu já tinha uma novela pronta que eu escrevi em inglês pra treinar mesmo, seria só traduzir. Mas, não, muito pesada, não posso, melhor deixar pra lá. Também tinha a Roads, que meus amigos me pediam muito pra continuar publicando. Eu não queria, ninguém vai querer ler uma coisa longa, episódica, fora de ordem e sem hot. No fim, aceitei pelos argumentos de uma amiga e porque eu realmente queria me dedicar a Roads da maneira como ela merece, mas publiquei já imaginando que não daria em nada. Também escrevi um romance policial e sobrenatural que chegou pertinho do final, faltava só terminar, num desses meus períodos de isolamento, mas… não, “ninguém vai querer ler” porque não tem hot, tem morte, tem fantasma, é grande demais, etc.

Também pensei em retomar os ensaios sobre escrita que eu fazia, que eram até uma forma de organizar meus próprios pensamentos, e as pessoas gostavam das dicas que eu dava. Mas, não, as pessoas hoje não gostam de ler coisas grandes, o texto tem que caber num carrossel do Instagram, em parágrafos curtos, ou dá preguiça, não é prático. “Por que você não faz vídeo? Podcast?” Não tenho autoestima, não fiz transição ainda e toda vez que mostro minha cara ou a minha voz as pessoas subitamente trocam meus pronomes, é exaustivo. Ou é escrito ou nada. “É melhor não escrever”, então. Não à toa, é a segunda vez que tento escrever este texto, e tenho estado com ele na cabeça há uns meses. Porque falar de maneira pessoal e compartilhar a minha história, que é exemplo também de outras pessoas, é choramingar demais, é inveja, é arrogância, é egocentrismo, é ainda lutar contra a maré.

É melhor não escrever.

Entende?

Bom, não é como se eu conseguisse escrever agora. Quando as coisas de fato ruíram, mais ou menos na metade de 2024, com uma soma de problemas na vida que incluíam a frustração com a escrita, a minha mente quase apagou. De verdade. A coisa virou física de um jeito tão intenso que precisei de mais uma medicação, até hoje eu tenho tentado me recuperar.

Talvez este texto aqui seja um pouco disso também. Dar os primeiros passos que eu preciso não só pra me reconectar com a escrita, mas encontrar de novo o Kyran Escritor que naufragou bem fundo em algum lugar. Não é sem motivos que tenho uma ouroboros tatuada no pulso.

Enfim, eu tenho desenhado e pintado bastante.

E, enquanto isso, tenho ouvido os meus discos de vinil.

Se antes eu só via Youtube no computador que ficava sempre ligado, agora mal pego no computador e prefiro assistir as coisas na TV. Também evito ficar mexendo no celular, e mais ainda ficar rolando os feeds das minhas contas. Ainda assim, basta entrar pra ver aquelas DMs de vídeos de bichinhos que minhas amigas me mandam que vai aparecer logo de cara alguma notícia ruim — como políticas anti-LGBT+, saudações neonazistas, pesquisas sobre o declínio da saúde mental na maior parte do planeta, milennials rindo pra não chorar porque não conseguem emprego nem sair da casa dos pais, aquecimento global e desastres naturais, guerras, violências, prejuízos já comprovados do uso de IA no nosso dia a dia, o declínio da literatura e da capacidade de intepretação de texto das pessoas, etc.

Tudo isso também foi extremamente desgastante.

Perceber como tem me feito bem mexer com arte tradicional e ouvir música na vitrola também me fez perceber como a internet hoje em dia é mais exaustiva do que nunca. Toda hora é notícia, toda hora é contato, toda hora é alguém ditando regras de como a gente deve ser e viver, toda hora é alguém exibindo tudo o que a gente luta pra ter e não consegue. Então, ficar alheio é o que tem feito bem pro meu humor, e até ajuda a dissipar essa névoa que desde o ano passado começou a pairar na minha cabeça, tão espessa que eu sinto que ela esconde ainda meu vocabulário, embora não as minhas ideias sempre agitadas aqui dentro.

Mas, enfim, esse reencontro com as coisas físicas parece que tem me feito reencontrar comigo mesmo também. Eu desenho sem ficar me comparando com ninguém, só observo as referências e inspirações e tento fazer alguma coisa próxima disso. Era como eu costumava me sentir com a escrita. Eu sempre gostei de ler livros e assistir filmes com roteiros que me fizessem sentir prazerosamente burro, justamente pra eu aprender algo novo e saborear o desenvolvimento desse conhecimento nas minhas próprias artes.

A escrita, porém, ainda é algo complicado. Tenho um episódio da Roads of Trust empacado desde a metade do ano passado. Ele estava andando junto com a revisão de La Danse des Morts, o último romance que escrevi, baseado num conto que eu tinha esperando aqui nas minhas pastas há tempos por um desenvolvimento melhor.

Quando escrevi La Danse des Morts, eu tive que fazer um esforço consciente de abdicar de tudo o que eu aprendi nos últimos anos, do que me disseram que era o certo fazer desde Meus Dois Amantes. Eu, já sentindo um vazio enorme, prestes a ter um esgotamento que quase me transformou num vegetal, decidi pegar aquele conto, ler livros de pesquisa e fazer dele um grande romance, o grande romance que tem mais da minha identidade como autor e, talvez, como pessoa, do que qualquer outro. Digo “grande” não exaltando a minha obra, mas pela imensidão de páginas e parágrafos que eu decidi não economizar, não inibir. Então, La Danse des Morts tem absolutamente tudo que me falaram pra não fazer se eu queria vender meus livros, porque eu soltei completamente meus demônios. E foi a última coisa a qual me orgulho ter escrito. Mesmo sem ter segurança o suficiente pra evitar a antipropaganda que eu mesmo fiz do meu livro. Mas me deu um alívio muito grande, me fez enxergar e sentir outra vez as coisas que me construíram como autor. E, sendo uma linguagem de época, eu consegui até me esquivar um pouco do pavor de estar fazendo um texto seco, oco, insípido, como eu tinha a sensação de estar escrevendo tudo e qualquer coisa até então.

La Danse des Morts foi o primeiro “não” que eu disse pra essa vozinha persistente na minha cabeça que continua repetindo “É melhor não escrever”. E talvez este texto seja o segundo passo. Eu ainda não sei como organizar a minha vida, literária principalmente, mas alguém que não tem esperanças não espera mais nada, certo? E, se eu não espero nada, não tem mais motivos pra eu não escrever sobre algo. Minhas coisas já não são boas nem lidas, então tudo bem. Eu preciso só dissipar o resto dessa neblina terrível na minha cabeça, cuidar da minha condição física e recuperar as palavras que eu preciso pra escrever mais dessas histórias que estão aqui, caóticas e presas na minha mente, querendo gritar pro mundo.

“É melhor não escrever” — afinal, além de o meio ser desfavorável, o mundo inteiro está desfavorável, as notícias dizem isso.

Então, eu tenho que voltar a escrever pra mim mesmo, pôr pra fora essas histórias que espontaneamente se manifestam dentro de mim, pra que eu também possa ver com clareza como elas realmente são; e, se por ventura alguém se interessar, elas vão estar lá. Eu vou estar lá. Eu já estou lá, mesmo que empoeirado e escondido nas prateleiras.

Escrever não dá dinheiro; mas, em mundos como este, a arte ainda é vital. Pra mim, ela precisa partir de um sentido antes de ganhar um preço. Eu ainda prefiro contar histórias que representem, questionem ou tornem explícita alguma coisa, por pior que essa coisa seja. E não quero conceber uma ideia pensando se ela está nos moldes da atualidade, se isso me faz pior ou melhor do que alguém. Eu só quero recuperar minhas forças pra conseguir expressar e pensar a natureza das ideias, porque isso também me faz enxergar e entender quem eu realmente sou.

“Antes ame a arte em você do que você na arte.”

— Constantin Stanislavski, A Construção da Personagem (pag. 22, ed. Civilização Brasileira, 29ª edição, 2020)

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𝐌𝐄𝐌𝐎𝐑𝐈𝐀𝐋𝐀𝐃𝐃𝐑𝐄𝐒𝐒
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Written by 𝐌𝐄𝐌𝐎𝐑𝐈𝐀𝐋𝐀𝐃𝐃𝐑𝐄𝐒𝐒

𝐊𝐘𝐑𝐀𝐍 // 𝐄𝐬𝐜𝐫𝐢𝐭𝐨𝐫 𝐩𝐞𝐬𝐬𝐢𝐦𝐢𝐬𝐭𝐚 & 𝐑𝐞𝐯𝐢𝐬𝐨𝐫 𝐩𝐞𝐝𝐚𝐧𝐭𝐞 — http://memorialaddress.org

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