Sobre: As responsabilidades da escrita
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(Artigo originalmente publicado em 05/03/2021, no antigo blog do MemorialAddress.org e no blog da Liga dos Betas. Editado em 08/12/2021.)
Faz um bom tempo que eu não dou as caras pra expressar meus achismos sobre escrita, certo? Porém faz um bom tempo que venho pensando em escrever de novo a esse respeito, tanto porque tenho divagaçÔes infinitas quanto pra, talvez, compensar esse tempo em que não venho postando nada de nada. :P
Como muita gente jå sabe, eu também fui revisor do grupo LGBTemas (no Wattpad). Eu e o Natan revisåvamos lå com, talvez, uma precisão ainda maior do que revisamos os trabalhos pagos, no intuito de ajudar mesmo os autores a enxergarem problemas no texto e apontar o que não tå dando certo e o que eles sabem fazer de melhor.
E estar mais ativo como revisor nos Ășltimos anos me mostrou e me ensinou muita, muita coisa. EntĂŁo eu sempre tenho vĂĄrias ideias sobre o que discorrer aqui.
DaĂ eu me peguei pensando: âDe tudo isso que aprendi, o que eu considero o mais essencial em relação Ă escrita? O que todos os autores experientes e inexperientes tĂȘm ou nĂŁo tem? Qual Ă© a base de um âbomâ texto?â
Na minha opiniĂŁo, se trata da responsabilidade.
Ă curioso como o Ășnico livro que me fez espumar de raiva, de tĂŁo chato que consigo torcer o nariz pra ele atĂ© hoje, me trouxe uma das melhores frases sobre escrita que jĂĄ li em toda a minha vida:
Todo autor deveria escrever seus livros como se fosse ser decapitado no dia em que o terminasse.
â Scott Fitzgerald, Este Lado do ParaĂso (pĂĄg. 310, ed. Cosac Naify, 2013)
à uma frase que podemos interpretar como sendo sobre responsabilidade. Se na conclusão de um texto estivéssemos sendo condenados à guilhotina e nossas palavras fossem responsåveis pra nos livrar desse espetåculo sanguinolento, que palavras seriam essas?
Pode parecer um exemplo exagerado, engraçadinho, agressivo atĂ© â mas quando escrevemos e publicamos, nĂŁo estamos levando nossa reputação a um palco? Pra um monte de desconhecidos ver e julgar se merecemos ou nĂŁo os likes, os comentĂĄrios e, principalmente, os compartilhamentos?
Toda vez que, revisando, eu questiono um autor sobre aquilo que eu considero inapropriado num texto, sou obrigado a escutar a mesma frase:
âMas eu sĂł escrevo por diversĂŁo/hobby!â
Ou:
âEu escrevo sĂł pra mim! NĂŁo me importa se os outros vĂŁo ler nem o que pensam!â
Desde o começo dos anos 2000 (que é quando eu entrei nesse mundo de escrita de internet e autopublicação).
E aĂ essas pessoas colocam o textos em plataformas pĂșblicas, onde sabem que hĂĄ leitores; colocam as hashtags mais populares pra chamar mais gente, divulgam nas redes sociais, mandam mensagens privadas inconvenientes nas redes de desconhecidos pedindo âLeiam o meu livro!â, publicam na Amazon, procuram editoras e fazem dias de autĂłgrafosâŠ
Vamos de dicionĂĄrio? O meu Houaiss (Editora Objetiva, 2009) diz que âpublicarâ Ă©:
- tornar (algo) pĂșblico, amplamente conhecido; divulgar, propagar;
- levar (algo) ao conhecimento do pĂșblico;
- reproduzir (obra escrita) por meio de impressĂŁo ou outro meio; dar Ă luz, editar;
- fazer imprimir e pĂŽr Ă venda ou distribuir gratuitamente (trabalho escrito, desenho, gravura, pintura etc.)
Etimologia: lat. publĂŹco (âŠ) âfazer pĂșblico, dar ao pĂșblico, deixar-se ver, mostrar-se em pĂșblicoâ
Os outros dicionĂĄrios em que dei uma olhada estĂŁo de acordo. E âpĂșblicoâ nunca Ă© uma ou duas pessoas, Ă© âsubs.: conjunto de pessoas, o povo; adj.: relativo ou pertencente a um povo, a uma coletividade, que Ă© aberto a quaisquer pessoasâ (Houaiss).
Logo, podemos presumir que quem publica quer ser visto pelo povo, certo? Ou todo mundo vai ter que procurar alguma outra palavra muito especĂfica para: âcolocar minha obra num site onde todo mundo vĂȘ e onde eu posso ganhar likes e comentĂĄrios mas fingindo que eu escrevo exclusivamente pra mim mesmo e nada mais importaâ.
Se um autor publica porque quer ser lido â porque esse Ă© o sentido da palavra e do prĂłprio ato de colocar algo onde todo mundo possa ver e interagir â , por que ele acha que ainda estĂĄ escrevendo âpra si mesmoâ? E aqui nĂŁo estamos falando de âEscrevo sobre esse e esse tema porque me satisfazâ, nĂŁo. Estamos falando de postar algo propositalmente pra ser lido, comentado e adorado, mas quando hĂĄ uma crĂtica construtiva ou uma repercussĂŁo negativa o autor se contradiz ao prĂłprio ato de publicar falando que sĂł escreve pra ele mesmo e nĂŁo quer/nĂŁo precisa da opiniĂŁo de mais ninguĂ©m.
De todas, creio que essa Ă© a maior irresponsabilidade de um autor, e infelizmente a mais comum e a mais difĂcil de remediar, porque quem dĂĄ esse tipo de resposta Ă© porque nĂŁo quer ouvir nada ânegativoâ, nem uma mĂsera crĂtica construtiva ou mais tĂ©cnica sobre um texto que ele criou sĂł por âdiversĂŁo/hobbyâ.
Tudo bem. Eu entendo que escrever pelo prazer de escrever Ă© maravilhoso. NinguĂ©m aqui estĂĄ dizendo que se deve escrever tĂŁo a sĂ©rio quanto um acadĂȘmico, ou a prĂłpria reencarnação de James Joyce (embora haja muitos autores de internet que incrivelmente alcançaram esse patamar sem ter lido mais de cinco livros na vida). Eu tambĂ©m entendo que as pessoas nunca querem combinar âdiversĂŁoâ com âresponsabilidadeâ â porque a palavra âresponsabilidadeâ carrega o peso do esforço, da racionalidade, da disciplina e do comprometimento. EntĂŁo Ă© como se nĂŁo pudĂ©ssemos nos divertir (livremente) enquanto somos responsĂĄveis (limitados). Ăgua e Ăłleo.
Mas pensem bem: Se vocĂȘs tĂȘm uns seis anos e estĂŁo aĂ num parquinho, normalmente vocĂȘs jĂĄ foram educados a respeitar os coleguinhas, esperar direitinho na fila do escorregador, evitar bater ou pisotear o castelinho de areia de alguĂ©m, nĂŁo sujar o lugar, nĂŁo comer areia porque faz mal, etc. NĂŁo devemos fazer com os outros o que nĂŁo queremos que façam conosco, e nĂŁo devemos inutilizar um espaço do qual usufruĂmos. Quando tem fogo no parquinho, quem Ă© que consegue se divertir com os brinquedinhos? (Hahahahaha Sorry, eu tinha que⊠â )
Por que a literatura geral e, principalmente, a literatura de internet corresponde a essa analogia do parquinho? Porque estamos lidando com um ambiente considerado, majoritariamente, divertido, mas que também envolve outras pessoas.
O autor responsĂĄvel deve ter consciĂȘncia de que: alĂ©m de ele estar transmitindo suas ideias e emoçÔes pra vĂĄrias pessoas ao mesmo tempo, que podem ser influenciadas por aquilo que ele expressa, ele tambĂ©m estĂĄ escrevendo sobre pessoas.
EntĂŁo, vamos tratar disso em tĂłpicos!:
1. A responsabilidade com o pĂșblico.
Nenhum filme pode ser feito sem a compreensĂŁo das reaçÔes e antecipaçÔes do pĂșblico. VocĂȘ deve moldar seu filme de maneira que ele tanto expresse sua visĂŁo quanto satisfaça os desejos do pĂșblico. O pĂșblico Ă© uma força tĂŁo determinante para a criação da estĂłria quanto qualquer outro elemento. Pois sem ele, o ato criativo nĂŁo tem sentido.
â Robert McKee, Story â SubstĂąncia, estrutura, estilo e os princĂpios da escrita de roteiro (pĂĄg. 21, ed. Arte & Letra, 2013)
Eu lembro que quando eu tinha uns onze anos eu jĂĄ entrava em site pornĂŽ.
Sem meus pais saberem, Ă© claro.
Classificação etĂĄria pra quĂȘ? Um indicador de idade ou de temas nĂŁo barra ninguĂ©m de ir lĂĄ e ver um conteĂșdo considerado inapropriado. Hoje em dia os sites atĂ© tentam, existem bloqueadores, mas pra um bloqueador funcionar alguĂ©m de maior e responsĂĄvel pelo indivĂduo de menor tem que ir lĂĄ ajeitar tudo bonitinho, e monitorar o que os filhos estĂŁo vendo. Meus pais atĂ© tentavam: Queriam saber com quem eu conversava, mas nĂŁo viam o que eu via na internet, porque de dia eu brincava em sites de vestir bonequinhas e depois da meia-noite, quando a internet discada era de graça, atĂ© filme pornĂŽ no Kazaa eu baixava e ninguĂ©m sabia de nada. Eu, ninja virtual do novo milĂȘnio, nĂŁo deixava rastros.
O que eu quero dizer é que: neste exato momento, hå menores de idade fazendo exatamente isso. Se eu fuçava essas coisas e, é claro, consumia fanfics pornogråficas nessa idade, e meus amigos também, quantos mais não faziam/fazem/farão isso?
Ă claro que existem coisas que sĂŁo de fato inofensivas, mas a maioria, na verdade, sĂł parece ser. A quantidade de estĂłrias romĂąnticas e sexuais consumidas e escritas por menores de idade Ă© enorme. Quando vocĂȘ dĂĄ essas estĂłrias para seres humaninhos que ainda estĂŁo literalmente desenvolvendo o cĂ©rebro, querendo ou nĂŁo vocĂȘ estĂĄ dando uma ideia e uma influĂȘncia sobre certas questĂ”es nas vidas deles. NĂŁo culpam tanto as princesas antigas da Disney por disciplinar meninas a esperarem por prĂncipes encantados? SerĂĄ que nĂłs, autores, estamos fazendo algo diferente disso? Os prĂncipes hoje podem nĂŁo vir a cavalo e nem ser do sexo oposto pra uma relação normativa (de acordo com o que a sociedade espera), mas nĂŁo estamos criando personagens lindos, ricos, inteligentes e, portanto, desejĂĄveis e inalcançåveis de qualquer maneira?
VocĂȘs jĂĄ viram a quantidade de estĂłrias no Wattpad em que uma garota adolescente se apaixona pelo âdono do morroâ? Dono esse que tambĂ©m nem precisa ser maior de idade, mas alĂ©m de beleza, dinheiro e armas, ele jĂĄ tem um poder sobre um espaço geogrĂĄfico inteiro. De onde essas autoras (porque a maioria sĂŁo meninas adolescentes) tiraram essa ideia de que se envolver com marmanjo barra pesada Ă© legal? Elas chegaram nessa ideia sozinhas, ou elas consumiram alguma obra escrita, cinematogrĂĄfica, musical, etc., que as fizeram pensar que esse Ă© o conto de fadas moderno? Entendem o que quero dizer? AlguĂ©m começou com isso, e pode ter sido atĂ© alguĂ©m com uma vivĂȘncia pessoal e mais madura sobre o caso â mas foi parar na internet, digamos, e uma adolescente leu, achou empolgante, escreveu a prĂłpria romantização dela sobre o assunto, daĂ outra adolescente leu e resolveu escrever tambĂ©m, por aĂ vai.
Isso quer dizer que toda pessoa que lĂȘ esse tipo de coisa vai ser influenciada a fazer a mesma coisa na vida real? NĂŁo.
Mas vocĂȘs perceberam que uma grande parte acaba sim perseguindo esse tipo de coisa fora da ficção?
âAh, Kyran, mas aĂ vocĂȘ tĂĄ falando de adolescentes ingĂȘnuas! O meu pĂșblico Ă© adulto!â
E por que raios um adulto Ă© menos influenciĂĄvel? Ou vocĂȘs se esqueceram que uma adulta escreveu a Saga CrepĂșsculo, e outra adulta escreveu uma fanfic BDSM dessa saga que ficou tĂŁo popular que ela teve que mudar de tĂtulo e chamar de Cinquenta Tons de Cinza? DaĂ foi aquele burburinho de que o BDSM tava todo errado, que era absurdo a Anastasia se submeter daquele jeito, que o livro reforçava um monte de coisas negativas, blĂĄ, blĂĄ, blĂĄ.
VocĂȘs jĂĄ ouviram aquela coisa de que: quando vocĂȘ aponta um dedo pra julgar outra pessoa, vocĂȘ estĂĄ apontando mais quatro pra vocĂȘ mesmo?
Eu conheço muitos autores que se juram muito distantes e muito melhores que as autoras das obras citadas acima â mas que sĂł escrevem com personagens ricos, independentes, sarados, magros, de olhos claros, pele branca, caracterĂsticas norte-americanas/europĂ©ias, bons de cama, dos quais a jornada do herĂłi se resume a vilĂ”es (geralmente mulheres) tentando destruir o relacionamento atual deles ou que todo o objetivo da trama Ă© o protagonista acasalar com o outro protagonista num final que Ă© sempre fechadinho e feliz eternamente.
E quantos desses elementos fazem parte da vida real? Ăs vezes uma pessoa tem toda essa aparĂȘncia considerada perfeita, mas Ă© uma abusadora, narcisista, o escambau â assim como uma pessoa sem essas âqualidadesâ reverenciadas pode ter muito mais carĂĄter. AlĂ©m disso, nossas vidas sĂŁo uma grande histĂłria que compila vĂĄrias outras pequenas histĂłrias, e nem todas essas histĂłrias tĂȘm finais felizes e fechamentos. De quantas situaçÔes a gente jĂĄ nĂŁo se afastou sem saber como poderia ter terminado? Mais ainda: Quantas vezes nĂŁo tivemos que pagar um preço alto pra ter exatamente aquilo que tanto querĂamos? E o fim Ă© um alĂvio com um gosto amargo.
Fora a idolatria ao sexo. NĂŁo basta o mundo inteiro hoje em dia falar de sexo direta ou indiretamente nos filmes, nas mĂșsicas â eu creio que uma maioria de estĂłrias publicadas por crianças, adolescentes e adultos nesses sites que nĂłs sabemos quais sĂŁo trata o sexo como prioridade de vida. Entende? Todo o propĂłsito da trama Ă© os protagonistas transarem, esse Ă© o ĂĄpice. E eu nĂŁo estou nem falando dos contos erĂłticos, estou falando de contos e romances cujas sinopses prometem um desenvolvimento hollywoodiano.
Quem me conhece sabe que eu sou a Ășltima pessoa que poderia pedir pra âacabarâ com isso (nem tem como acabar, anyway). E eu vejo que tem menores de idade lendo os absurdos que escrevi. Fora isso, eu tambĂ©m jĂĄ tive minha Ă©poca em que todos os meus contos tinham que ter uma cena de sexo ou desenvolver uma situação atĂ© o momento do sexo, mesmo que esse sexo nĂŁo fosse descrito.
EntĂŁo, pelas minhas façanhas literĂĄrias e as dos outros, eu comecei a perceber que muitos leitores levam sim toda essa questĂŁo pro lado pessoal: cria-se esse pensamento de que sexo Ă© a coisa mais importante e ninguĂ©m pode viver sem, que se vocĂȘ nĂŁo transa vocĂȘ tem algum problema, vocĂȘ Ă© atrasado, vocĂȘ nĂŁo Ă© bonito o suficiente, vocĂȘ Ă© infantil e sei lĂĄ mais o quĂȘ. E como essa mensagem nĂŁo estĂĄ inclusa apenas em estorinhas de internet, mas em todo tipo de coisas que consumimos diariamente, a gente ainda tem pessoas com baixĂssima autoestima porque nĂŁo se sentem boas o bastante pros outros, meninas ainda engravidando cedo independente da condição financeira da famĂlia, o crescimento absurdo da AIDS nos Ășltimos anosâŠ
O entretenimento ainda Ă© o que prescreve e perpetua nossos gostos e nossas escolhas. E o maior perigo disso Ă© justamente porque ele chega sem te dizer: âQuero te convencer dessa ideia!â NĂŁo. VocĂȘ nem pode negar, porque nĂŁo foi proposto um debate, vocĂȘ nem se dĂĄ conta de que estĂĄ se entregando Ă influĂȘncia de algo. Ele vai simplesmente mostrar coisas com as quais vocĂȘ sonha, se identifica, tem curiosidade; mostrar situaçÔes possĂveis que te façam desejar viver ou nĂŁo viver aquilo, ou atĂ© tentar te impor um modo de vida. Ă tĂŁo sutil que a gente nem percebe â ou a gente finge que nĂŁo percebe, mas se alguĂ©m vem perguntar âQuais livros mais te inspiraram?â ou âQual filme que mais te marcou na sua vida?â a gente sempre vai ter a resposta na ponta da lĂngua.
DaĂ vocĂȘ tem adolescentes sonhando com o âdono do morroâ e querendo transar desesperadamente antes dos 15, mulheres hetero com Christian Grays mais egoĂstas e violentos alĂ©m do fetiche, homens hetero com mulheres peitudas e bundudas na mesa do cafĂ© e do almoço e da janta, mulheres lĂ©sbicas com outras mulheres hiper femininas e transonas e romĂąnticas, homens gays com o aquele baguete de 30cm que nunca vemâŠ
Mas, considerando o fato de que sempre vamos estar influenciando alguém sobre uma ideia ou uma atitude, a gente nem deveria estar escrevendo. à isso?
Claro que nĂŁo.
Porque o entretenimento, as artes, e todas essas coisas que consumimos pelo nosso emocional e nossa razĂŁo tambĂ©m influenciam positivamente, educa, levanta discussĂ”es, mostra o bom e o ruim de uma mesma situação. Como estamos falando de textos aqui, Ă© um meio mais vĂvido e muitas vezes convincente de exemplificar a vida de outras pessoas ou situaçÔes metafĂłricas por meio de personagens, ou construçÔes estĂ©ticas, e, sobretudo, desenvolver a interpretação que estĂĄ diretamente ligada a como vemos e lidamos com a vida no dia a dia.
E isso nos leva à representação de personagens.
2. A responsabilidade com as pessoas.
Os autores costumam dizer coisas das quais não se dão conta; apenas depois da reação de seus leitores é que eles descobrem o que haviam dito.
â Umberto Eco, ConfissĂ”es de um jovem romancista (pĂĄg. 45, ed. Cosac Naify, 2013)
Se vocĂȘ tambĂ©m estĂĄ vivendo nesta Ă©poca de militĂąncia virtual, com certeza vocĂȘ jĂĄ deve ter dado um puta de um gatilho em alguĂ©m.
Como eu disse lå no começo, enquanto escritores de ficção nós não estamos apenas escrevendo para pessoas, mas também sobre pessoas.
Por mais mirabolante que seja uma estĂłria, todo esse universo e todos os seus personagens sĂŁo baseados, inspirados em coisas e pessoas que nĂłs conhecemos. Ă quase impossĂvel inventar algo do zero. Se nĂŁo temos referĂȘncias artĂsticas, temos cientĂficas (como a gravidade, a terra, as plantas, o cĂ©u, etc.), alĂ©m de vivermos em sociedade e sabermos pelo contato direto ou indireto quem sĂŁo as pessoas e de que maneira elas se comportam. Se vocĂȘs vĂŁo escrever sobre o tal do dono do morro, Ă© claro que vocĂȘs fazem isso porque sabem que existem rapazes em favelas/comunidades que se comportam de tal jeito e fazem isso e aquilo, ainda que na sua ficção haja exagero, romantização, o que for â ou seja: ainda que vocĂȘ aprimore, inverta, degrida, repinte por inteiro com o seu imaginĂĄrio essa sua base realista.
Se inevitavelmente escrevemos sobre personagens que representam pessoas e vivĂȘncias reais, Ă© Ăłbvio que isso vai afetar o discernimento de quem lĂȘ â principalmente aquelas pessoas que nĂŁo tem um conhecimento prĂ©vio sobre a questĂŁo retratada ali, e que nem se dispĂ”em a procurar por conta prĂłpria informaçÔes mais consistentes e atĂ© acadĂȘmicas do que leram num texto de ficção.
SĂ©rio. Se as pessoas hoje tĂȘm preguiça atĂ© de procurar no Google alguma coisa, nĂŁo abrem nem um dicionĂĄrio virtual pra pesquisar sobre uma palavra em inglĂȘs ou portuguĂȘs, ou perguntam âQual Ă© a cor do boto?â num post em que jĂĄ estĂĄ escrito que o maldito do boto Ă© cor-de-rosa, sinceramente nĂŁo Ă© possĂvel que a gente teime em acreditar que, se elas leram nossas estĂłrias e sĂł estĂłrias como as nossas, essas pessoas vĂŁo atrĂĄs de pesquisar sobre algo que vocĂȘ inseriu no seu texto pra saber o que Ă© real ou o que Ă© ficção.
Ă claro que nem todos os leitores sĂŁo assim, mas nĂŁo tem como a gente fingir que em minoria ou maioria nĂŁo hĂĄ leitores com esse perfil.
Voltando lĂĄ ao exemplo das representaçÔes masculinas em estĂłrias escritas por e/ou pra mulheres: Existe um grande nĂșmero de adolescentes fascinadas por bad boys e que se deixam cair em todo tipo de buraco com esses caras, assim como mulheres maduras que acham que um homem bonito Ă© tudo que elas precisam, e que o ciĂșme doentio Ă© uma prova de amor, que se ela apanhou Ă© porque ela mereceu ou vai acabar em sexo. Por aĂ vaĂ. Porque nĂŁo faltam estĂłrias nessa internet onde o par romĂąntico Ă© um grande filho da puta nas atitudes, mas a putaria dele cheira a rosas mesmo com um carĂĄter tĂŁo podre.
Mas essa Ă© sĂł a ponta do iceberg.
NĂłs ainda temos muita exclusĂŁo de pessoas negras e gordas nas mesmas estĂłrias de pessoas que no Twitter cancelam tudo e todo mundo quando os outros nĂŁo colocam representatividade nas coisas. E cito aqui especificamente pessoas negras e gordas porque vocĂȘs nĂŁo precisam de dias de pesquisas, mil links de artigos e uma pilha de livros pra colocar um personagem desses nas estĂłrias de vocĂȘs se os enredos forem sĂł uns romancinhos mel-com-açĂșcar, encontros sexuais, ou quaisquer outros tipos de coisas que nĂŁo envolvam as histĂłrias e as discussĂ”es de grupos sociais marginalizados.
E se por um lado temos a exclusĂŁo de certos tipos de pessoas e assuntos, por outro tambĂ©m temos autores que acham que nasceram sabendo de tudo e podem falar sobre as vivĂȘncias dos outros.
Eu, me considerando parte do T e do Q de LGBTQIA+, sinceramente jĂĄ vi cada bizarrice, de autores que nem sĂŁo T nem Q, tratando do assunto com todo aquele desejo de ser militante ou se provar pros outros como militante e sem perceber (por falta de autocrĂtica ou descaso mesmo) que pode ter passado alguma informação errada ou incoerente. Por exemplo? Esses dias li uma estĂłria de um cara trans que circulava sem camisa por aĂ no meio das pessoas e ninguĂ©m percebia que ele era trans. Se o autor prestasse um pouco de atenção em homens trans que estĂŁo espalhados em todas as redes sociais hoje, perceberia que a mastectomia (cirurgia que remove completamente os seios) deixa cicatrizes que Ă s vezes nem tatuagens conseguem esconder direito â mas nĂŁo, no conto que eu li nĂŁo tinha nem tatuagens pra cobrir as cicatrizes. Tudo bem se a passabilidade do homem trans era alta, sĂł que Ă© estranho ninguĂ©m nem perguntar que cicatrizes eram aquelas. E, vĂ©i, Ă© difĂcil pra porra clarear e tirar essas cicatrizes.
Outro caso envolvendo pessoas trans, desta vez mulheres transexuais e travestis, Ă© que elas sempre tĂȘm umas estĂłrias tristes pra caralho, de ninguĂ©m aceitĂĄ-las nunca, cheias de depressĂŁo e desgraças e sei lĂĄ mais o quĂȘ â e, apesar de a realidade pra mulheres trans e travestis realmente ser muito dura, nem todas sĂŁo rejeitadas nos meios em que vivem, e a passabilidade de algumas permite que elas circulem por aĂ sem serem identificadas como trans.
Terminando de descer desastrosamente pelo arco-Ăris e rolando de volta pro começo: Quem nĂŁo conhece o protagonista machista escroto violento ciumento que Ă© assim porque, coitadinho, ele teve um trauma ter-rĂ-vel no passado?! Os pais dele sofreram um acidente de carro quando ele ainda era muito jovem. AĂ ele resolveu se revoltar com o mundo. EntĂŁo ele vira um coitadinho, porque ele tem problemas psicolĂłgicos. A protagonista humilhada e trouxa Ă© a pessoa que nos dois Ășltimos capĂtulos percebe que Ă© sĂł estalar os dedos que ele muda.
Bom, hĂĄ vĂĄrias razĂ”es pelas quais uma pessoa pode ser assim, e algumas delas estarem mesmo ligadas a traumas do passado. HĂĄ vĂĄrios tipos de problemas referentes a agressividade e falta de empatia na psicologia. O fato Ă© que nĂŁo hĂĄ cura pra maioria desses problemas, Ă© preciso acompanhamento, remĂ©dios, limitaçÔes. E o tratamento pra uma bipolaridade nĂŁo pode ser o mesmo pra uma psicopatia, ainda mais porque cada indivĂduo desenvolve o problema Ă sua maneira.
A gente pode falar de culturas tambĂ©m. Tem gente que ainda hoje acredita que os celtas eram canibais, porque isso foi reforçado no boca a boca e no imaginĂĄrio ocidental romano e cristĂŁo durante muito tempo. Quem Ă© gamer sabe que saiu Assassinâs Creed Valhala e um monte de macho começou a choramingar que entre os vikings nĂŁo existia mulheres guerreiras, sendo que os vikings eram uma cultura tambĂ©m de mulheres guerreiras. HĂĄ estĂłrias que se passam em 1920, Ă©poca de ouro das melindrosas (flappers) e do Charleston, da sensualidade e da liberdade feminina, mas ou elas aparecem vestindo roupas que as cobrem do pescoço aos pĂ©s em espartilhos apertadĂssimos, ou usam aquela tiara com peninha na cabeça e vestidos de lantejoulas com biquinho de Betty Boop â mas se vocĂȘ jogar â1920 Fashionâ no Google imagens vocĂȘ pode encontrar isso aqui.
Resumindo todos os exemplos: nós também somos responsåveis por transmitir conhecimentos e a imagem positiva ou negativa de algo ou alguém.
Mas isso poderia ser resolvido com o quĂȘ?
Com a boa e velha pesquisa.
3. A responsabilidade com a informação.
Aprendi algumas coisas enquanto escrevia meu primeiro romance. Primeiro, que âinspiraçãoâ Ă© uma palavra ruim que autores manhosos usam a fim de parecerem artisticamente respeitĂĄveis. Conforme o velho adĂĄgio, a genialidade Ă© composta de dez por cento de inspiração e noventa por cento de transpiração. (âŠ)
â Umberto Eco, ConfissĂ”es de um jovem romancista (pĂĄgs. 13, ed. Cosac Naify, 2013).
Deu pra perceber que todos os exemplos acima poderiam oferecer uma representação melhor com um mĂnimo de pesquisa? Tipo olhar as fotos de pessoas em 1920 no Google, ou assistir uns canais de pessoas trans no Youtube pra saber as diversas realidades trans que existem.
Eu estava na internet no ano 2000 e estou na internet agora em 2021, e talvez algumas pessoas (principalmente aqueles que nasceram em 2000) nĂŁo tenham noção de como a quantidade de conteĂșdo online sobre todos os tipos de assuntos foi de âum monteâ pra âinfinitoâ. Se vocĂȘ sabe inglĂȘs ou se dispĂ”e a usar tradutor pra pesquisar em outros idiomas, aĂ vocĂȘ consegue mais coisas ainda!
Exemplo disso Ă©: Apesar de eu nĂŁo ser uma pessoa negra/preta (vou deixar os dois porque sei que tem gente que prefere um ou outro), eu sempre me interessei por outras culturas, e algumas delas sĂŁo de descendĂȘncia africana espalhadas pelo mundo, ou de culturas dentro da Ăfrica. Foi uma das maiores dificuldades que eu passei na minha vida, tentando caçar material. Todos os livros falavam sĂł da escravidĂŁo aqui no Brasil, nas amĂ©ricas, mas eu nĂŁo queria saber mais sobre escravidĂŁo, eu queria conhecer outras culturas de lĂĄ, os conflitos internos, as tribos, os reinados, os idiomas, as mitologias. Eu cheguei a me arriscar a fazer um rascunho de uma estĂłria, um primeiro capĂtulo acho, mas minha melhor amiga disse que nĂŁo gostou, nĂŁo estava emocionante, nĂŁo tinha nada do que eu tinha prometido, e perguntou o que eu realmente queria com aquela estĂłria, o que eu queria expressar atravĂ©s dela. AĂ eu pus a estĂłria na gaveta, e fui tentando coletar mais e mais material. Passou uns anos e finalmente as pessoas de descendĂȘncia africana estavam tomando todos os cantos, e aĂ vieram livros e mais livros e eu âAAAAAHH!!â.
No meio disso tudo, Ă© claro, acabei descobrindo que eu jĂĄ tinha uma base consistente pra escrever sobre afrodescendentes nos Estados Unidos, atĂ© porque eles sempre tiveram um movimento mais visĂvel, e todo esse conteĂșdo apareceu online antes e em maior nĂșmero do que certos tĂłpicos daqui do Brasil. Digo, Ă© tĂŁo detalhado o que eles fizeram ali que vocĂȘ consegue seguir os passos contados de uma pessoa negra na Ă©poca da segregação. Fora as representaçÔes visuais que foram feitas desde muito tempo, boas ou ruins, que tambĂ©m compĂ”em o trajeto da discussĂŁo.
Mas vejam bem: Eu preferi cancelar um projeto do que me arriscar a escrever algo que nĂŁo sĂł estava vazio de conteĂșdo, como certamente passaria ideias erradas e contrĂĄrias ao meu prĂłprio propĂłsito, alĂ©m de me fazer ser acusado de racismo. Porque nossas boas intençÔes nĂŁo curam as feridas dos outros. (E nĂŁo me arrependo nĂŁo. A ideia em si era ruim mesmo, a escrita pior ainda.)
à claro que esse recuo pode me fazer escrever com mais personagens brancos, por exemplo, porque essa é a minha realidade. Eu prefiro não escrever sobre algo do que publicar uma ideia ruim sobre algo que estå lutando pra conquistar seu espaço de direito, porque também é assim que eu me sinto em relação às coisas que consumo. Não quero prejudicar nem ser prejudicado. Por outro lado, mesmo não escrevendo tanto sobre as culturas afrodescendentes do mundo como eu gostaria, eu acabo escrevendo muito sobre outros grupos sociais que se encontram em desvantagem, problemas emocionais e psicológicos, etc.
Entendem o que quero dizer? NĂłs nĂŁo precisamos anunciar por meio da escrita o quĂŁo militante nĂłs acreditamos que somos. Ăs vezes a gente sĂł quer escrever mesmo putaria com os nossos fetiches ou um romancinho bobo pra dar uns suspiros, e deixar a militĂąncia pra vida real, ou nem militar, mas continuar sobrevivendo e respeitando, compreendendo e auxiliando o prĂłximo. AtĂ© porque, quanto mais vocĂȘ afirma que Ă© algo, menos parece que vocĂȘ Ă© esse algo (o BBB 2021 nos deu bons exemplos disso). Ă por isso que eu visivelmente nĂŁo tenho muita paciĂȘncia com autores que querem colocar militĂąncia e representatividade em todos os textos, atĂ© porque nem sempre o conteĂșdo Ă© realmente informativo, ou atĂ© distorce as coisas. Fora que falar de muitas coisas ao mesmo tempo pode significar que nĂŁo se Ă© aprofundado em nada. Acreditem: depois de anos lendo e revisando, eu garanto que dĂĄ pra saber muito do autor pela ficção que ele escreve.
Mas eu nĂŁo sei o que diabos acontece que os mesmos autores que querem ser populares nesses sites de publicação e vender livros tendem, em maioria (pelo menos do meu ponto de vista nesses anos e nessas redes todas), a nĂŁo sĂł se recusarem a pesquisar e ler, como ainda se ofendem quando sĂŁo corrigidos numa boa, quando vocĂȘ oferece ajuda. Eu jĂĄ cheguei a ficar uma madrugada inteira revisando e escrevendo um textĂŁo sobre como resolver os problemas do texto do Fulano, com um monte de fontes e exemplos e livros e tudo, pro indivĂduo chegar e dizer que nĂŁo precisa disso, que sequer leu a minha revisĂŁo cheia de material pra ele.
A esse ponto eu nĂŁo me pergunto mais que tipo de autores essas pessoas querem ser, mas sim que tipo de pessoas eles sĂŁo. Porque se aquilo que tĂĄ no texto Ă© o ponto de vista deles sobre aquele assunto, sem desenvolvimento, sem embasamento nenhum, entĂŁo eu fico realmente assustado com esse comportamento deles como indivĂduos na sociedade tambĂ©m. E eu nĂŁo estou falando sobre discordĂąncia com os meus pontos de vista, e sim, por exemplo, sobre a descrição caricata de algum tipo de pessoa como personagem, ou mesmo a romantização de atos imperdoĂĄveis.
Hoje em dia existem mil formas facilitadas de pesquisa: alĂ©m dos livros e textĂ”es de sempre, tem canais especializados em temas no Youtube ou pessoas interessadas nesses mesmos temas discorrendo resumidamente sobre, fora essa moda dos podcasts que tĂĄ aĂ pra gente ouvir enquanto fazemos qualquer outra coisa. Ademais, se vocĂȘs escrevem coisas mais simples, podem chegar em algum conhecido ou algum desses grupos em vĂĄrias redes e perguntar, tirar suas dĂșvidas. Se vocĂȘ nĂŁo sabe por onde começar, sempre vai ter alguĂ©m num Facebook ou Reddit da vida atendendo seu pedido de socorro e mandando um monte de material ou divagação sobre o tema.
Eu fico me perguntando se vale mesmo a pena essa birra de ânĂŁo preciso aprender mais nadaâ sĂł porque alguĂ©m disse que a coisa estĂĄ incompleta, errada, ininteligĂvel. Porque o prejuĂzo definitivamente nĂŁo estĂĄ em quem te criticou: A pessoa simplesmente vai parar de ler as suas coisas. SĂŁo vocĂȘs que, cedo ou tarde, vĂŁo ter que lidar com as consequĂȘncias de transmitir aquilo que nĂŁo Ă©. Hoje pode estar tudo ok, mas uma hora o bicho pega.
E eu estou sendo propositalmente abrangente nisso de âtransmitir aquilo que nĂŁo Ă©â porque tem pessoas que chegam a se recusar a ler livros porque elas jĂĄ tĂȘm milhĂ”es de seguidores e de comentĂĄrios, e essa falsa popularidade que a internet oferece as faz acreditar que isso Ă© fruto do dom delas, que elas nasceram assim e, portanto, estĂŁo acima dessas outras pessoas reclamonas que estĂŁo com inveja da sua capacidade de escrever e ser adorada por tanta gente.
Minha teoria Ă© a de que: por terem muitas ideias e conseguirem escrever desenfreadamente essas ideias (jĂĄ que a escrita nĂŁo Ă© considerada uma arte de fĂĄcil construção, principalmente num paĂs onde colĂ©gios particulares caros ainda formam analfabetos funcionais), empolgadĂssimos, esses autores parecem acreditar que a ideia em si Ă© o suficiente, o verdadeiro valor da obra, porque eles a enxergam claramente na prĂłpria cabeça, e vĂȘem a escrita sĂł como um meio de dar vazĂŁo a ela, compartilhĂĄ-la com os outros.
Ou seja: âMinha ideia Ă© tĂŁo boa mas tĂŁo boa que logicamente o meu texto vai sair automaticamente como a minha ideia!â
Eu tenho uma notĂcia muito triste pra dar:
O fato de vocĂȘ conseguir visualizar a sua ideia com tamanha perfeição, porque ela estĂĄ na sua cabeça, nĂŁo significa que as suas palavras estejam representando fielmente as suas ideias e, portanto, que as outras pessoas vĂŁo ver a sua estĂłria como vocĂȘ a vĂȘ â porque as outras pessoas nĂŁo estĂŁo na sua cabeça, oras. Principalmente se vocĂȘ nĂŁo tem vocabulĂĄrio o suficiente, nĂŁo conhece e nem entende os porquĂȘs das regras gramaticais, nĂŁo sabe interpretar o peso, o clima, enfim, a expressĂŁo individual que cada palavra carrega em si.
Eu tenho uma notĂcia mais triste ainda pra dar:
Mesmo os escritores mais experientes hoje em dia, mesmo os grandes escritores da histĂłria, enfim, tĂȘm/tinham que ficar pesquisando, se contorcendo, lutando, choramingando, pra conseguir desenvolver meios ideiais (sim, plural) pra expressarem aquilo que eles querem/queriam.
E vamos de exemplo:
Certa vez eu estava revisando um texto de uma amiga. A protagonista era muito delicada, certinha, intelectual, formal â do tipo que nĂŁo faz movimentos bruscos, nĂŁo fala alto nem nada, divaga bastante. A autora tinha usado sempre adjetivos assim, âsuavesâ, que deram a entender todas essas caracterĂsticas que citei antes. AtĂ© que, quando a personagem estava chorando, a autora disse que ela usou os âdedĂ”esâ para enxugar as prĂłprias lĂĄgrimas. Ăbvio que eu falei que a menina parecia que tinha uns dedĂ”es desproporcinais ao resto do corpo inteiro, porque âdedĂŁoâ Ă© aumentativo de qualquer dedo que seja, embora normalmente a gente use pra falar dos polegares. Mas Ă© uma palavra que denota algo grande e pesado, por causa desse â-ĂŁoâ aĂ, que alĂ©m de tudo faz a gente produzir um som mais forte com a boca. Se todos os adjetivos antes nĂŁo tinham nem aumentativos nem diminutivos, dĂĄ-se a entender que ela tinha proporçÔes comuns, nada que chamasse atenção. Um simples âdedĂŁoâ quebra nĂŁo sĂł o tipo dos adjetivos dados Ă s caracterĂsticas dela, como dessoava com toda a narrativa do texto que tinha uma pegada poĂ©tica contemporĂąnea e romĂąntica.
Elaborando agora o exemplo: Se vocĂȘ diz que âEla andava com seus pezinhos descalços pelo jardim de mil cores, o vento soprando seu vestidinho branco e florido de piquĂȘ enquanto ela tentava segurar seu chapĂ©u de abas longas. Parecia uma pluma dançando pelo cĂ©u azulâŠâ â âpezinhosâ no diminutivo ou se refere a pĂ©s pequenos ou pĂ©s de criança; âdescalçosâ sugere que ela tem em si uma rebeldia inocente, infantil e despreocupada; âvestidinho branco e florido de piquĂȘâ deve ser um vestido curto, e reforça os aspectos anteriores, alĂ©m de representar feminilidade e fragilidade (porque flores sĂŁo bonitas e frĂĄgeis); um âchapĂ©u de abas longasâ pode fazer uma pessoa parecer menor; âpluma dançando pelo cĂ©u azulâ fala de leveza, de uma âagitação tranquilaâ, num dia tĂŁo bonito que pode ficar marcado na memĂłria como se fosse uma pintura rococĂł. Tudo isso pra dizer que a personagem Ă© uma pessoa delicada â seja por afirmação de um narrador impessoal em 3ÂȘ pessoa ou pela visĂŁo fascinada de outro personagem em 1ÂȘ pessoa.
Se eu tivesse escrito âEla, que era toda delicada, estava andando alegremente pelo jardim.â causaria a mesma sensação? Tudo bem, a palavra âdelicadezaâ objetivamente diz que a personagem Ă© delicada, e essa Ă© uma informação importante sobre ela neste momento; mas a palavra âdelicadezaâ carrega sozinha a importĂąncia que essa delicadeza da personagem tem na narrativa? Principalmente se esse for o ponto de vista de outro personagem, a descrição enfirulada pode sugerir que ele a vĂȘ como modelo viva brincando numa pintura rococĂł â e ele ver ela assim mostra o grau de fascinação e idealização que ele tem por ela, tornando a personagem mais onĂrica, ao mesmo tempo em que parece pesar no que ele sente por ela. Com ou sem esse outro personagem, esse efeito vai pro leitor, que capta a composição dessa descrição e visualiza sozinho essa personagem dos sonhos, e Ă© um trecho que pode ficar marcado como lembrança imagĂ©tica da obra em questĂŁo.
Entendem? Existem vĂĄrias maneiras de expressar uma ideia. Expressar por meio da escrita Ă© muito diferente de simplesmente escrever as palavras que significam isso e aquilo. A poesia, por exemplo, nĂŁo Ă© estĂ©tica sĂł porque Ă© bela â ela Ă© bela porque ela tenta usar de palavras pra transmitir emoçÔes e sensaçÔes.
Filosofando um pouco mais, o que seriam essas emoçÔes e sensaçÔes? NĂŁo seriam reaçÔes Ă quilo que transpĂ”e o corpo fĂsico e nossa razĂŁo, fazendo a gente sentir no peito e no tato? E por que a gente sente essas coisas que chegam atĂ© nĂłs a partir de um simples texto?
Porque o texto conseguiu entrar em nós graças a uma composição certa de palavras, ou porque previamente nos identificamos com a emoção, sentimento e/ou ideias gerais que o texto estå nos narrando, declamando ou cantando. Porque um texto nunca vem vazio: Ou ele vem com emoçÔes, sentimentos e ideias de um autor a respeito de algo, com o contexto de vida desse autor, ou nós o interpretamos com os nossos próprios sentidos, nossos próprios contextos.
Ă por isso que, no seu DicionĂĄrio FilosĂłfico, ao falar sobre Beleza, Belo, Voltaire conta que foi assistir uma peça na companhia de um filĂłsofo, e o filĂłsofo todo âOh! Como isto Ă© belo!â; e Voltaire, por ser Voltaire e chato como sĂł ele, perguntou onde estava a beleza nisso. O colega filĂłsofo dele disse que era porque a peça tinha atingido sua finalidade. Depois, o filĂłsofo tomou um purgante e Voltaire teve a pa-chor-ra de dizer que aquele era um âbelo purganteâ, porque tinha atingido sua finalidade. AĂ o filĂłsofo teve que concordar que ele tinha achado a tal da peça tĂŁo bela porque tinha proporcionado nele admiração e prazer â ou seja, emoçÔes/sentimentos.
4. Responsabilidade sobre as responsabilidades.
Em geral, estudantes e estudiosos de todos os tipos e de qualquer idade tĂȘm em mira apenas a informação, nĂŁo a instrução. Sua honra Ă© baseada no fato de terem informaçÔes sobre tudo, sobre todas as pedras, ou plantas, ou batalhas, ou experiĂȘncias, sobre o resumo ou o conjunto de todos os livros. NĂŁo ocorre a eles que a informação Ă© um mero meio para a instrução, tendo pouco ou nenhum valor por si mesma (âŠ)
â Schopenhauer, A Arte de Escrever (pĂĄg. 20, ed. L&PM, 2019)
A questĂŁo nĂŁo Ă© pararmos de escrever, nĂŁo Ă© pararmos de publicar: Ă assumirmos as nossas responsabilidades por aquilo que dizemos, escrevemos e transmitimos por aĂ.
E estar atento Ă s outras pessoas â aos leitores e pessoas que inspiram nossos personagens â nĂŁo Ă© apenas uma responsabilidade com a nossa prĂłpria reputação ou uma responsabilidade social, mas tambĂ©m Ă© uma questĂŁo de empatia.
à claro que não podemos nos anular porque uma ou outra pessoa ficou engatilhada com nossos temas, porque uma ou outra pessoa achou ruim. Mas é bom a gente sempre parar pra ouvir e refletir sobre como a gente pode melhorar na escrita, na expressão escrita, pra conseguir representar situaçÔes não só mais realistas, como também mais humanizadas (solidårias), além de apresentar ideias bem desenvolvidas ou suscitar a discussão de novas ideias.
Ă isso. Como sempre espero ter ajudado, e qualquer dĂșvida ou debate eu vou estar respondendo nos comentĂĄrios.
Até logo!
*O grupo LGBTemas foi deletado do Wattpad no final do mesmo ano.
**Este post tambĂ©m pode ser encontrado no blog da Liga dos Betas. Muito obrigado, Kallisti, por ter me convidado. â„