Sobre: Os problemas da representatividade
A representavidade é pop!
Ela está em todos os lugares! Agora, nós finalmente temos pessoas pretas, mulheres e LGBTs+ protagonizando filmes, séries e livros da moda! E nós, que somos “minoria”, devemos ser profundamente gratos por nos cederem finalmente esse espacinho no mainstream! Devemos aceitar absolutamente tudo o que é dito e mostrado sobre nós, sem críticas, porque criticar é feio, é militar demais, e demonstra que somos ingratos por esses favores que a indústria do entretenimento tem nos dado — afinal, nós sequer aparecíamos como protagonistas dessas histórias até ontem.
Certo?
Viva o fim do preconceito! Yay!
Vocês já foram assistir ao filme da Barbie? Esse dirigido pela Greta Gerwing, que tem dado o que falar desde antes de estrear, e que mobilizou as pessoas irem de rosa até o cinema? Mesmo os homens brancos heterossexuais cisgêneros estavam lá, prontos para ouvir a palavra da nossa boneca favorita desde sempre.
E toda essa mobilização foi realmente algo incrível, por mais que eu saiba que todo esse marketing só tenha sido feito e tenha funcionado porque o entretenimento tem mais interesse em ganhar dinheiro do que educar as pessoas sobre a importância do feminismo e da representatividade. Mas é muito bom saber que, nos tempos atuais, até esses homens cis estão interessados em ver a história dessa boneca loira fashion que, mesmo sendo padrão, ainda assim representa não apenas tantas garotas, tantas mulheres, como outras pessoas que vêem desde sempre na Barbie alguma referência, alguma esperança, alguma mensagem positiva, independentemente do quanto de capitalismo esteja envolvido na criação e na comercialização dessa marca. A sensação que tive com esse filme foi a de que os humilhados finalmente estão sendo exaltados, tanto dentro quanto fora das telas.
Esse filme ser criado e lançado já de maneira tão potente e o movimento que ele causou demonstram, sim, que os tempos mudaram, que continuam mudando — que estamos evoluindo nas questões sociais mais depressa nos últimos dez anos do que evoluímos nos anos anteriores, e olha que o século XX teve muitos movimentos importantes.
Mas então ‘tá tudo certo, não é? O preconceito e o machismo acabaram, não existe mais apagamentos sociais e culturais, todo mundo ‘tá vivendo feliz nesta atual igualdade, ‘tá todo mundo sendo devidamente representado em todas as mídias…
Opa. Não é exatamente esse o plot do filme da Barbie?
Caso você não tenha visto o filme (veja.), a história se inicia no mundo maravilhoso das bonecas Barbie, onde o machismo e o preconceito não existem; onde a presidente é preta, as médicas são mulheres, por aí vai; e onde as próprias bonecas acreditam terem acabado com toda a desigualdade e injustiça no mundo real.
Mas a Barbie pensa na morte de repente. As coisas começam a dar errado. Pra entender o que ‘tá rolando, ela é obrigada a ir até o mundo real pra resolver essa questão.
No mundo real, ela logo começa a se sentir incomodada, e leva um tapão na bunda, de um assediador. Mais pra frente, ela descobre que todos os executivos da Mattel são homens brancos usando gravatas cor de rosa, discutindo sobre o que é melhor pro universo feminino. Quase não se vê mulheres no edifício da Mattel inteiro.
O mundo real não era nada do que a Barbie acreditava que era e, quando ela chega nele, ela não sabe lidar, mal sabe como escapar.
Eu, como pessoa LGBT+, que passou a maior parte da vida condicionado a viver como uma garota, que escreve histórias de ficção desde criança e está envolvido nesse meio da arte e do entretenimento, assisti esse filme vendo não somente as críticas explícitas de feminismo vs. machismo, como questões além, que me fizeram lembrar de situações passadas e ainda presentes que me incomodam, e como muitas obras que trazem representatividade ainda falham em nos representar de fato.
E é a partir daqui, meus caros amigos, que eu vou começar a dizer as coisas que muitos de vocês não querem ouvir (ler, no caso).
Antes, um breve contexto queer:
Como todo bom militante que se despreze, não posso falar sobre representatividade sem me incluir diretamente na questão — afinal, eu sou (?) uma criança dos anos 90, que sempre se sentiu diferente e atraído pelo diferente, o que me fazia ser excluído socialmente e encontrar refúgio sobretudo em animações e quadrinhos japoneses, que sempre foram cheios personagens andróginos, afeminados, queers, enfim, “diferentes” também de alguma maneira. Lembro até hoje da minha mãe indignada por causa do casal Haruka e Michiru, de Sailor Moon, quando eu assistia no Cartoon Network. Pra ela, era absurdo isso passar na TV e num canal pra crianças. Ela disse que não queria que eu assistisse mais, mas meus pais nunca fizeram esforços efetivos de me proibir de assistir ou ter contato com as coisas, desde que eu estivesse dentro de casa. E eles acabavam se esquecendo completamente dessas “proibições” também, então eu tive essa grande sorte.
Enfim, eram essas as representações queer que eu tinha, e que eu fui consumindo às escondidas por muitos anos, indo pras fanfics BL de Cavaleiros do Zodíaco, ouvindo e surtando com a polêmica All The Things She Said do duo t.A.T.u. com a minha irmã, descobrindo o rock japonês e que os caras fazem crossdressing, até assistir Gia (1998) passando de madrugada na TV aberta e ficando de queixo caído por me fazer questionar minha própria sexualidade finalmente, sobretudo porque eu criei uma paixão platônica absurda pela Angelina Jolie a partir desse ponto.
A minha vivência queer foi como várias outras que, principalmente naquela época, não encontravam essas referências, essas representações facilmente. Lembro do quanto eu tinha que procurar por obras na internet que tivessem essa temática e, ainda assim, os personagens dessas obras também se limitavam às normas de gênero, padrão de beleza, branqueamento, por aí vai. É claro que cada LGBT+ tem seu nicho também, mas eu, que era ligado à apreciação da cultura japonesa, ia nesses eventos de anime, ou encontrinhos de fãs de jrock fazendo visual kei e gothic lolita, e era nesses lugares onde a gente se soltava completamente — não só na maneira de a gente se vestir, como em questão de sexualidade também. Então, as minhas referências físicas também se tornaram essas. Ao menos, eu tive a sorte de ter contato com pessoas que eram como eu, e que pareciam ser a materialização de tudo o que eu procurava secretamente na internet pra não me sentir sozinho no mundo, por exemplo.
Lembro que foi por volta de 2010 que eu vi as coisas começarem a mudar, inicialmente na internet mesmo, embora eu tivesse quase surtado de felicidade quando uma das minhas professoras da faculdade abordou a teoria queer na sala de aula, e foi mais ou menos nessa época que eu comecei a me investigar um pouco mais. Eu já escrevia BL desde 2003/2004, se não me engano, e, embora muito do que eu escrevia ainda tivesse essa pegada de fanfic, mesmo sendo original, isso me levou a amadurecer e a estudar mais sobre sexualidade, grupos marginalizados (“minorias”), excluídos, questões raciais e afins. Boa parte do meu inglês veio de foi caçar estudos sobre tudo isso que eu só encontrava lá fora, até que aos poucos a discussão começou a chegar aqui, graças, principalmente, à popularização do Youtube, e de jovens como eu que começaram a falar publicamente sobre essas questões.
Enfim. Tudo o que eu disse até agora pode soar óbvio e desnecessário pra algumas pessoas, mas a minha proposta é realmente levar informação, sobretudo àqueles que não possuem, e é por saber que muitas pessoas que não são LGBT+, nem pretas, nem nunca foram excluídas por qualquer motivo que seja vão ler este artigo que eu preciso descrever esse cenário pra quem nunca o conheceu e, mesmo assim, tenta escrever sobre ele.
Afinal de contas: Pessoas hetero e cisgênero podem escrever sobre pessoas LGBT+? Pessoas brancas podem escrever sobre pessoas pretas? Pessoas que nasceram em condições saudáveis e privilegiadas podem escrever sobre pessoas que nasceram com qualquer tipo de limitação física e social?
Quem pode falar sobre a diversidade?
Ao persistirem na ideia de que são universais e falam por todos, insistem em falar pelos outros, quando, na verdade, estão falando de si ao se julgarem universais.
— Djamila Ribeiro, Lugar de fala (ed. Pólen, 2019)
Você com certeza conhece o termo “lugar de fala” — porque se popularizou tanto que, no fim, virou bagunça, e enquanto alguns militantes usam isso toda hora pra inflar o próprio ego, sem nem conhecê-lo profundamente, e acabaram esvaziando o termo, outras pessoas de fora dos grupinhos da marginalização social simplesmente ignoram a existência dele, ou se sentem extremamente culpadas por ele antes mesmo de darem qualquer pitaco sobre qualquer coisa.
Mas a questão não é, exatamente, quem fala, mas sim como essa pessoa fala, o que ela fala e de que contexto ela fala.
O mesmo se dá em relação à apropriação cultural que, como a Djamila e o Leandro Karnal dizem neste vídeo aqui, não é que uma pessoa branca não possa usar tranças: é que uma pessoa branca sempre vai ser aceita e admirada enquanto usar tranças e dreads, é a pessoa branca que vai popularizar algo que já faz parte das culturas negras — enquanto que uma pessoa preta sofre todo tipo racismo por isso, desde ouvir que ela tem o cabelo ruim, ou sendo ou se sentindo obrigada a alisar o cabelo, até perder oportunidades de emprego, sofrer de baixa autoestima e depressão, por aí vai.
Afinal, foi exatamente isso o que aconteceu com o rock: Elvis Presley só fez sucesso porque, embora cantasse como uma pessoa preta as músicas de pessoas pretas, ele era um homem branco. Os artistas pretos dificilmente chegavam a esse nível de popularidade e, quando chegavam, ainda não eram bem-vindos no meio dos mesmos brancos que consumiam ou imitavam suas artes — como no caso da atriz Hattie McDaniel, que foi a primeira pessoa preta a ganhar um Oscar, mas não queriam que ela comparecesse ao evento justamente por causa de sua cor.
Isso, obviamente, foi no auge da segregação racial dos Estados Unidos. Mas por que até hoje pessoas pretas, latinas, asiáticas, queers, enfim, de diversidade, ainda são as menos premiadas e menos pagas? Este vídeo do Sociocrônica também traz alguns exemplos, que vão desde o momento da Hattie McDaniel até as premiações mais atuais.
Mas o problema da apropriação não para por aí: O filme Azul É A Cor Mais Quente, embora tenha sua origem na graphic novel de um homem trans, se tornou um filme sáfico fetichista pro diretor Abdellatif Kechiche, que abusou física e psicologicamente das duas atrizes durante as gravações.
Em países do leste asiático, surgiu e se popularizou o gênero YAOI, ou Boys Love, com obras que retratam relações homoafetivas, mas que ainda são considerados como escritos “de mulheres para mulheres” — ou seja, o público masculino e gay é minoria, pois os homens gays não se vêem representados nessas obras, uma vez que a maioria dos personagens é “uma idealização do próprio fetiche das mulheres por um tipo físico e psicológico de homens e da relação entre eles” (e estou colocando entre aspas apenas porque, hoje, é justo questionar se esse julgamento negativo sobre os tipos de personagens criados por essas autoras não advém também do machismo, que é tão presente na cultura gay e ainda idolatra a figura do homem másculo, criada, inclusive, pela própria cultura heteronormativa). Em contraponto, então, foi criado o gênero Bara, que apresenta essas relações pelo ponto de vista dos homens pra outros homens. Ou seja: se por um lado foi as mulheres que popularizam essas histórias homoafetivas, por outro os homossexuais da vida real não se viam nem nesses enredos, nem nas imagens que elas criavam.
Além disso, aqui mesmo no Brasil esse tipo de apropriação acontece, ou o Porta dos Fundos não teria feito este vídeo aqui. Quem vê de fora deve achar exagerado, ou quem é assim jamais deve se imaginar assim — mas eu garanto que todo LGBT+ conhece pelo menos uma pessoa desse tipo. Eu, sinceramente, conheço várias. Meu primo, que é bi e casado com outro homem, há pouco tempo atrás me contou de uma amiga do trabalho dele que fala exatamente dessa forma, ao mesmo tempo em que já tentou curar num psicólogo uma sobrinha que é LGBT+. E o pior é que não são só essas pessoas usam as nossas gírias, tomam nossos espaços, imitam nossas artes, como não entendem nada da nossa luta diária e não têm a consciência ou a humildade de perceberem quando e como estão atrapalhando.
Porque um verdadeiro aliado é isso: é sobretudo ter a consciência de que nós não somos o outro, que devemos ajudar sem calar ou esconder o outro.
Então, quando a Madonna apresentou ao mainstream a dança vogue, ela tanto ajudou quanto atrapalhou: porque o destaque foi pra ela, que já era grande, popular, branca e conhecida como hetero, e não pra comunidade LGBT+ em que se originava esse estilo. Tanto que muita gente até hoje nem sabe que é um estilo de dança, de onde veio. É mais fácil se lembrarem da música da Madonna.
Ou seja: se em todos esses últimos exemplos algo da cultura LGBT+ foi trazido ao grande público e aprovado por ele, por outro esses elementos foram esvaziados de sua origem e passaram a se tornar, mais uma vez, a identidade de uma pessoa branca, hetero, cis, etc., que não faz parte desses grupos, e apenas transmite à sua maneira uma vivência que não é dela, porque isso a agrada, a diverte. Prova disso é que até hoje você não vê pretos no mainstream do rock.
Então, só quem faz parte de um grupo marginalizado é quem pode falar sobre esse grupo marginalizado, e mais ninguém?
O fato de uma pessoa ser negra não significa que ela saberá refletir crítica e filosoficamente sobre as consequências do racismo.
— Djamila Ribeiro, Lugar de fala (ed. Pólen, 2019)
O fato de uma pessoa ser mulher não significa que ela sabe refletir crítica e filosoficamente sobre as consequências do machismo. O fato de uma pessoa ser LGBT+ não significa que ela saberá refletir… etc.
Como revisor, o que eu mais tenho que corrigir em livros escritos por mulheres são discursos e situações machistas, ou que reduzem as capacidades femininas pra exaltar as masculinas. Também é constante que eu esteja conversando com outras pessoas LGBT+, de várias idades e vivências, sobre conceitos e questões LGBT+ que elas não entendem. Ademais, conheço pessoas negras que são extremamente racistas (ainda que, veja bem, o racismo de pessoas negras contra elas mesmas seja muito diferente do racismo de uma pessoa branca para com uma pessoa negra, que fique bem claro).
Portanto, retomando em novas palavras o que eu já disse logo no começo deste tópico, quem pode falar sobre as vivências dos outros é quem tem consciência crítica e empática de como são essas vivências, e de como elas estão sempre vulneráveis a qualquer palavra dita de maneira errada ou descuidada.
Mas essa consciência não se adquire de um dia pro outro, de um mês pro outro. Sobretudo se você não faz parte de um desses grupos, e não tem as experiências que nos fazem identificar com certas obras e estudos.
Sinceramente? Eu fico apavorado, sentindo um cringe danado, quando as pessoas simplesmente olham pra mim e decidem que vão começar a escrever uma história sobre uma pessoa trans, como se isso fosse me prestar uma homenagem, como se eu fosse um ET Bilú que merece uma fanfic, a “diversidade da vez” que apareceu na Roleta da Diversidade que essa pessoa gira toda hora que quer escrever com algum protagonismo diferente do heteronormativo.
Eu já fui o babaca destruidor de sonhos que disse que a pessoa não estava preparada pra escrever esse tipo de história, se ela realmente queria transmitir alguma realidade e veracidade da vivência trans — porque não é só assistindo vídeos e lendo matérias rápidas de jornais online durante um ou dois meses que ela vai entender o que é ser e os problemas de ser outra pessoa, sobretudo porque todo grupo social é muito diverso em si mesmo, eu tenho privilégios que outros não têm, por aí vai.
Eu mesmo, como autor, apesar de estudar há tantos anos sobre culturas, questões étnicas, sexualidade, etc., ainda tenho muito receio de fazer uma história ou um personagem de tão fora da minha realidade. Sei que peco nisso um monte de vezes, tenho plena consciência do meu racismo estrutural e de que tenho que, cotidianamente, tentar melhorar isso — mas também penso que não é justo, não me sinto confortável em transmitir minhas poucas impressões sobre alguma pessoa ou um grupo que eu não quero que seja ainda mais prejudicado por minha causa. Prefiro divulgar pessoas que têm lugar de fala e mais propriedade pra tratar desses assuntos.
Afinal,
É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna.
— Chimamanda Ngozi Adiche, O perigo de uma história única (ed. Companhia das Letras, 2019)
Os problemas da representatividade excessiva
Essa tal Roleta da Diversidade não é nem algo que eu inventei não, ‘tá? Nos bastidores desse monte de livros LGBT+ que não param de surgir, foram outras pessoas que, mesmo sem se conhecerem, usaram comigo esse exemplo da roleta pra exemplificar como os outros autores parecem estar escolhendo aleatoriamente os personagens dos seus livros “pra nos representar”. Isso acontece tanto no meio de obras independentes quanto, é claro, na própria Hollywood.
Quando eu assisti A Baleia (2023) com minhas amigas, a gente não conseguia parar de comentar: “Que absurdo isso! Que desnecessário aquilo! Meu Deus! Que péssimo terem feito essa coisa!” — porque, embora a atuação do Brendan Fraser seja mesmo digna de Oscar e ele se relacione com o protagonista, esse filme colocou simplesmente tudo, tudo o que a gente sempre pediu pra pararem de fazer em relação a pessoas gordas e obesas (como o fato de ele comer como um porco, por exemplo, fazendo toda aquela sujeira e aqueles barulhos agoniantes) e, não só isso, ainda acrescentou o fato de o protagonista ser homossexual e se foder na vida também por esse motivo. Gente, esse filme parece até seguir as regras do Código Hays, que sempre puniam o protagonista de maneiras terríveis quando ele era fora do padrão.
Mas as pessoas ficaram realmente tocadas e emocionadas com esse filme! Geralmente pessoas de fora dessa realidade, de fora até de qualquer realidade muito discriminatória, ou confortáveis em suas bolhas sem perceberem o que acontece ao redor delas. Isso me lembrou a quantidade de outros filmes com representatividade, como Thelma & Louise (1991), Filadélfia (1993), O Segredo de Brokeback Mountain (2005), etc., em que os personagens são punidos por serem quem são. É claro que esses mesmos filmes também abriram muitos olhos pras nossas questões, e Filadélfia mesmo merece respeito e relevância até hoje — mas, ainda que eu mesmo seja escritor de dramas pesadíssimos, fiquei me questionando por que as pessoas precisam ver “o diferente”, “o monstro”, “a baleia” sofrendo e/ou morrendo nessas histórias pra se emocionarem com as nossas vivências. Aliás, a questão não é nem “por que eles precisam nos ver morrendo”, porque a maioria das pessoas não nos vê morrendo ou quão mais suscetíveis estamos à morte; elas precisam ver atores famosos morrendo como se fosse um de nós pra terem alguma empatia, já que grande parte das pessoas que consomem essas histórias de diversidade não fazem uma real ideia de quantas pessoas obesas e LGBT+ morrem todos os dias, seja porque um paciente obeso não tinha uma maca que o comportasse, ou porque ainda somos o país que mais mata pessoas trans no mundo (embora sejamos o que mais consome pornografia com pessoas trans também).
Eu discordo, porém, de que deveriam ter colocado uma pessoa obesa de verdade pra fazer o papel que o Brendan fez. Primeiro que, sejamos realistas: se não fosse um ator tão famoso quanto o Brendan Fraser, ninguém iria assistir a um filme de uma pessoa obesa com ator desconhecido (se esse método funcionasse, as pessoas teriam ido assistir Tangerine (2015), um filme protagonizado por travestis de verdade, tanto quanto fizeram questão de ir vaiar A Garota Dinamarquesa (2015) no cinema), é geralmente uma aposta muito alta e incerta, e poderia fracassar em chamar a atenção pro tema que, bem ou mal, eles queriam que recebesse atenção; segundo que uma pessoa obesa de verdade tem dificuldades de locomoção, às vezes nem consegue ficar de pé, cansa fácil, sente falta de ar, tem problemas cardíacos e tudo mais. É um papel em que, sim, podemos colocar uma pessoa não-obesa pra servir de representação. Tanto que eu não tenho nenhuma crítica à interpretação do Brendan. A produção toda é que quis sobrecarregar esse filme de drama, torná-lo o mais apelativo possível por qualquer razão.
Aliás, foi esse excesso de drama ao abordar histórias de pessoas fora do padrão, sobretudo vendo surgir as primeiras histórias com personagens trans na internet, que eu comecei a me preocupar com o tipo de representação que estava sendo feita.
O plot mais comum dado a histórias de protagonismo trans retrata mulheres trans que são expulsas de casa, se prostitutem contra a própria vontade, apanham em algum momento da história, até que o homem cisgênero, que geralmente é branco e tem uma condição financeira melhor, aparece pra salvá-la. Histórias com homens trans são ainda mais raras, eles geralmente aparecem como personagens secundários que apanham de alguém também.
Bom, segundo as estatísticas, a gente sabe que essas coisas acontecem sim. Não estou dizendo que esses plots são completamente sem sentido. Pelo contrário, eles fazem parte de uma realidade cruel, em que a nossa estimativa de vida só vai até os 30 e poucos anos. A questão é que: quando querem falar sobre pessoas trans, os autores só conhecem histórias de violência; e, nas raras vezes em que tentam fugir disso, eles acabam criando cenários utópicos em que nós, pessoas queer, somos completamente aceitos neste mesmo mundo em que vivemos, o que torna essa história não fantástica, mas incomodamente irreal.
E por que eles só conhecem essas histórias de violência?
Porque são essas as histórias que são divulgadas, propagadas, repetidas — seja por notícias nas redes sociais e jornais online (porque nós não passamos nos noticiários), ou em outros livros e filmes que esses autores consomem.
Como diz a Chimamanda, esse é o perigo de uma história única:
A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história.
(…) A consequência da história única é esta: ela rouba a dignidade das pessoas. Torna difícil o reconhecimento da nossa humanidade em comum. Enfatiza como somos diferentes, e não como somos parecidos.
— Chimamanda Ngozi Adiche, O perigo de uma história única (ed. Companhia das Letras, 2019)
Como escritor de histórias majoritariamente dramáticas e violentas, eu sei bem que é uma linha muito tênue que divide um enredo com drama justificado de um drama apelativo, quase um exploitation (como eu acho que é o caso de A Baleia). Quando eu escolho conscientemente reproduzir essas histórias de violência, como eu fiz claramente em Meus Dois Amantes, as perguntas que me faço são:
- Por que eu quero fazer isso?
- Eu realmente preciso fazer isso?
- Como eu posso retratar esse tipo de pessoa e história sem desumanizá-la, sem objetificá-la, sem esvaziá-la, sem calá-la?
- Se eu fizer esta história, eu vou estar ofuscando as obras ou sobrepondo as vozes de quem realmente tem lugar de fala nesse tipo de relato?
- Eu tenho conhecimentos o suficiente pra falar sobre esse tipo de pessoa, sobre esse tema?
- De que modo as pessoas vão interpretar esta história?
- Eu tenho capacidade literária pra conseguir transmiti-la corretamente?
- Eu estou fazendo algum tipo de apropriação cultural?
- Eu tenho plena convicção de estar passando as mensagens corretas?
- Qual é o limite da violência nesta história, pra que ela não se torne um exploitation, um torture porn, uma violência pela violência que pode reforçar as coisas negativas sobre esse tipo de pessoa e de história de vida?
Trabalhar com histórias dramáticas e de violência é especialmente mais difícil, devido a essa linha tênue que mencionei e porque, inevitavelmente, com o tempo, nós escritores vamos nos tornando mais insensíveis e sádicos com os nossos próprios personagens. Quanto mais você escreve histórias, menos empatia e vivificação você vê nesses personagens, sobretudo se você consegue separar tão bem a realidade da ficção, já que os personagens acabam sendo moldados e montados de acordo com as necessidades técnicas de cada trama.
Mas o problema não é a “desvivificação” dos personagens, não é não vê-los mais como seres vivos — porque, afinal, eles ainda são criações imaginárias, eles não existem por conta própria e fora dos nossos parágrafos; o problema é a desumanização dos mesmos, é esquecer que esses personagens são representações de pessoas verdadeiras, já que a empatia ou a antipatia gerada por um personagem afeta diretamente as pessoas reais que são do mesmo tipo ou têm a mesma história que ele.
Mas, diferente do que as pessoas pensam, não são apenas histórias com violência e violência injustificada que trazem prejuízos às imagens dos grupos sociais retratados.
Uma informação ou uma descrição errada sobre algo ou alguém pode ser ainda mais problemática se está dentro de uma história feliz, de inclusão, de “coração quentinho” — pois mais pessoas se dispõem a ler histórias leves e fofas do que dramas catárticos.
Além disso, nós tendemos a acreditar mais naquilo que nos conforta, no que nos dá prazer, e, portanto, os leitores tendem a acreditar mais num autor de histórias felizes do que num autor que escreve cenas “pesadas” (tanto é que a maioria dos questionamentos dos leitores sobre a realidadade dessas cenas ou se dirige às cenas de drama, ou mais aos autores de drama e violência, como se todo o drama e violência na ficção fossem despropositados).
Porque nós procuramos ler, consumir e ouvir apenas aquilo que nos conforta, o que nos faz sentir bem; colocar uma dúvida nessas coisas que nos dão prazer gera desconforto, ansiedade, e negação de nossa parte em aceitar que aquilo em que acreditamos não é possível, ou aquilo de que gostamos não é saudável.
Ou seja: Se você procura histórias de “coração quentinho”, por mais que elas tenham seus dramas leves, você quer ler e não quer se preocupar em intrometer na leitura questionamentos sobre aquilo ser verdade ou não, porque você quer fugir da realidade — e questionar racionalmente uma história de ficção é interromper sua própria vivência dentro dessa história de ficção, interromper a fantasia na qual você se sente à salvo da realidade.
Além do mais, nós, leitores, vamos confiando cada vez mais em um autor a cada página, a cada livro de que gostamos, e é sempre muito difícil lidar com o fato de que esse autor pode simplesmente ter errado, ou pode ser o ignorante que não quis pesquisar corretamente a respeito de um assunto, entre outras coisas.
Portanto, é sempre menos gasto de energia mental a gente ler sem questionar o que estamos lendo. A gente entrega aos autores, sobretudo nossos autores preferidos, a responsabilidade de nos trazerem as informações mastigadas, devidamente explicadas, e literalmente as frases daquilo que devemos pensar e em que devemos acreditar.
Reparei nisso não apenas lendo e assistindo as coisas pro meu próprio entretenimento, mas, sobretudo, revisando histórias de outras pessoas — a maioria histórias leves, com um casal interracial onde o homem preto cumpre a cota da representatividade, e são histórias sempre cheias de discursos muito didáticos de “o preconceito é errado, devemos amar e respeitar uns aos outros” pronunciados pelos próprios personagens em parágrafos cheios, cheios de emoção e de palavras desnecessárias também; daí corta pras cenas de sexo, e o genital do homem preto, única e exclusivamente, é literalmente comparado ao Everest, é descrito como um membro gigante em toda oportunidade, ou é dito que os homens pretos têm muito fogo, assim como já vi histórias com esses mesmos discursos inclusivos dizerem que a garota “era negra da cor do pecado”, etc. Isso sem contar a quantidade de livros gays escritos por mulheres onde as personagens femininas são sempre inferiorizadas em benefício dos personagens masculinos, seja com um personagem homem dizendo que “não vou chorar como uma mulherzinha”, ou dois personagens gays dizendo que mulheres não sabem dar prazer de verdade aos homens.
(Nenhum desses autores estava tentando fazer críticas sociais. Eles nem tinham ideia de que escrever essas coisas era errado.)
Esses são apenas alguns exemplos, que estão em livros elogiados por suas histórias super inclusivas, de finais felizes e casais fofos. Quantos desses problemas você, leitor, percebe durante suas leituras? E quando você percebe, você tem coragem de ir avisar o autor educadamente ou, pra não magoá-lo, prefere deixar como está, sem se dar conta de que deixar como está pode continuar perpetuando esses estereótipos? Mas se você não critica e ninguém mais, aparentemente, criticou até agora, quem vai criticar e abrir os olhos desse autor, independentemente do bom ou mau humor com que ele reaja?
Vou dar um último exemplo de como uma história bonita pode nos enganar, nos tornar ignorantes e até mesmo cegos aos problemas cotidianos e seculares de grupos sociais marginalizados:
Um dos meus filmes favoritos da Disney desde o lançamento, e um dos meus filmes favoritos da vida é Pocahontas (1995).
Se você já leu ou pretende ler toda a bibliografia kyranesca, tendo agora essa informação, você vai perceber aqui e ali que esse filme específico é uma das minhas inspirações perpétuas, o que ainda me leva a escrever tantas histórias de amor de encontros de culturas ou de grupos sociais diferentes. Várias vezes em que eu sinto que preciso me embriagar de alguma história bonita e apaixonada pra escrever as minhas próprias, eu vou lá e reassisto a esse filme. Chego a me arrepiar em muitas cenas, e sinto meu próprio coração se aquecer, e uma coisa dentro de mim, muito gostosa, quando vejo aquela cena do primeiro encontro deles, quando a Pocahontas está diante da cachoeira, toda linda, com os cabelos ao vento, olhando curiosa pro estrangeiro, e o John Smith fica tão abobado que é como se ele estivesse vendo a própria deusa do amor das américas, e ele tira o chapéu num gesto sutil e involuntário de submissão, e caminha até ela, como que hipnotizado, como se ela, sem dizer uma palavra, o chamasse — e, pela maneira como ela o olha, é como se ela de fato o chamasse, embora esse novo homem, tão diferente de tudo que ela já viu, também a assuste.
Então eu amo a beleza emocional e estética desse filme, e esse plot em que um deve aprender sobre o outro porque se apaixonaram antes mesmo de falarem o mesmo idioma, e como isso gera conflitos internos e externos que amadurecem os personagens, fazem eles descobrirem coisas novas neles mesmos e, enfim, causa uma revolução social no mundo dessa história também, onde os conflitos são resolvidos e as duas culturas ficam em paz.
Mas o Pocahontas da Disney é a romantização de uma das várias histórias cruéis que aconteceram nas américas naquele período. Além de os homens brancos trazerem doenças que por si só dizimavam os povos que aqui habitavam, houveram conflitos e evangelizações que não somente destruíram tribos inteiras, como apagaram as culturas próprias que já estavam estabelecidas nestas terras há muito tempo. Isso sem falar que o encontro entre uma indígena e um homem branco geralmente acabava em estupros e casamentos forçados, onde essas indígenas tinham por vezes que abandonar seu povo e suas tradições pra viver em função do novo marido e dos costumes cristãos ingleses.
Nós, que somos brancos, não sentimos nem vemos porque somos descententes desses colonizadores, e somos de outro tempo; mas tudo isso deixou cicatrizes imensas, e gera problemas pra esses povos até hoje. É só jogar no Google e encontrar a quantidade de matérias sobre assassinatos e expropriações desses povos, ainda em benefício do homem branco. Sem falar que continuamos sabemos muito pouco das culturas indígenas que habitaram aqui e das que persistem até hoje, porque não vemos essas pessoas sendo representadas em lugar nenhum, senão em algumas poucas obras, e nas quais se fala justamente da época do “descobrimento”.
Então, eu cresci tendo Pocahontas como influência, e acreditando tanto nessa mensagem de paz e amor entre as diferenças que, é claro, sofri quando me dei conta de que esse filme era uma utopia, uma realidade que ainda parece inalcançável. Porque a história me causou tantas boas emoções e tinha uma mensagem tão positiva, eu acreditei por muito tempo que um encontro amistoso e até amoroso fosse possível, não fazia ideia de que tantos povos foram aniquilados de diversas maneiras nesse mesmo período em que o filme se passa.
E vocês podem estar pensando: “Ah, Kyran, mas só uma criança ou alguém muito jovem mesmo pra acreditar que Pocahontas é legítimo!”.
Discordo. Porque eu conheço leitores, de várias idades, que realmente acreditam em praticamente tudo que lêem — até porque é natural do ser humano oferecer primeiro a confiança e só depois de muitos motivos encontrar a desconfiança.
Tanto acreditam que reproduzem esse mesmo tipo de plot, ainda que mude o contexto histórico: Sempre tem um homem branco e mais afortunado salvando ou se apaixonando por uma mocinha ou LGBT+ mais pobre ou vulnerável.
Também é por acreditar no que lêem, inclusive, que há tantas pessoas em seitas como a Cientologia — que começou com um escritor fracassado de ficção científica que, não conseguindo ganhar dinheiro com seus livros, usou seus próprios livros de base pra fundar essa “religião” que mantém cativos até artistas muito famosos.
A partir do momento em que a gente tenta presumir que ninguém é tão ingênuo, a gente não só tenta impor ao outro uma consciência mais prudente e desenvolvida que é só nossa, gerada pelas nossas experiências, como a gente ainda nega a possibilidade de que qualquer um de nós pode acreditar em coisas mentirosas e prejudiciais.
Ou vai dizer que você nunca caiu em pegadinhas de 1º de abril?
Mas, em relação às nossas obras de ficção, somos nós, autores, que temos a responsabilidade primordial de escrever uma história que seja o menos mentirosa, o menos prejudicial possível a outrem.
É claro que o leitor tem suas responsabilidades também, que é a de selecionar o que lê e desenvolver sua interpretação, útil pra todo o seu cotidiano, pra vida inteira — mas que, infelizmente, nos últimos tempos, tem sido falha a ponto de as pessoas acharem que Saramago é cheio de erros, e reclamarem de livros com páginas cheias de parágrafos. As pessoas não estão conseguindo mais ler clássicos se eles não forem devidamente editados, resumidos e facilitados pro tempo atual, porque lidar com coisas longas e difíceis exige um esforço mental que a maioria das pessoas não está a disposta a empregar (tanto que, tenho certeza, muitos viram o tamanho deste artigo e já caíram fora). Contudo, é verdade que as pessoas nunca leram tanto. E tudo bem ler livros leves do CEO com a babá, do CEO com o secretário, do CEO com XYZ — mas sejamos honestos aqui: são livros em que as histórias e as narrativas se repetem, muitas vezes até o vocabulário usado. Se você lê cem livros de CEO ou de temas parecidos com esse, você fica tão enraizado na sua zona de conforto que, além de não aprender nada novo, estranha absolutamente tudo o que for diferente disso, seja no tipo de texto ou até de personagem. Afinal, não tem CEO índio, não tem CEO gordo…
É essencial que nós, autores, saibamos como os leitores estão lendo. Tudo. Nossos livros e os livros dos outros. Porque, se nós publicamos nossas histórias, nós precisamos saber pra quem estamos publicando e como essas pessoas vão reagir a essas publicações.
A gente não tem a obrigação de ensinar ninguém, mas a gente tem a obrigação, sim, de assumir a responsabilidade de que inevitavelmente as pessoas vão aprender alguma coisa com os nossos livros.
Coisas até que a gente nem imagina que a pessoa não sabia antes de ler o que a gente escreveu, ou que realmente é desconhecido mas chama tanto a atenção que a pessoa não esquece. É que nem eu ter colocado os cigarros pra asma em Love At Midnight porque é algo que existiu e era necessário na história, e meus leitores saíram aprendendo que nos anos anos 1930 as pessoas fumavam até pra sanar uma falta de ar; ou quando joguei tanto Assassin’s Creed Odyssey que saí repetindo “Maláka!” por um bom tempo.
Dito isso, um dos maiores problemas que eu encontro, tanto em leituras quanto em revisão, é que a maioria dos autores tem uma preguiça colossal de estudar sobre as coisas que querem escrever, ao mesmo tempo em que são orgulhosos ou econômicos demais pra pagar um revisor crítico/sensível especializado.
Exemplo disso é uma vez em que me propus a revisar um conto grande de graça, em um grupo que eu participava, e passei a noite inteira corrigindo erros de gramática e apontando problemas de narrativa, adicionando aos meus comentários não só explicações dos porquês de esses pontos não estarem bons, como dando sugestões de como arrumar, dando todos os links de fontes e referências que a pessoa iria precisar.
Uns dias depois de eu entregar o conto, a pessoa disse no grupo que decidiu escrever outro. Eu comentei que era legal também, que pelo menos essa pessoa tinha os exemplos da minha revisão com todos os links de pesquisa fáceis pra ajudar nessa nova história.
Foi quando a pessoa disse que não leu a minha revisão. Disse que ia ler só depois de terminar esse novo conto pra não “atrapalhar” a produção do mesmo, que queria tentar fazer um conto perfeito antes. Além disso, o conto desse indivíduo era sobre um anjo caído, homem; e ele estava querendo mandar esse conto pra uma coletânea sobre o feminino, cuja proposta era justamente exaltar mulheres e a pessoas femininas na ficção.
O próprio ego dos autores é algo que atrapalha não só na propagação de representatividades mais coesas, mais respeitosas, como, consequentemente, no desenvolvimento deles mesmos enquanto artistas, enquanto escritores.
Quando você recebe uma crítica e está mais preocupado em se defender, em negar o que o outro diz, você está olhando apenas pra si mesmo, e demonstra pro outro que você só escreveu por si mesmo, pelos seus lucros, e não porque está de fato preocupado em mostrar uma realidade e ajudar na mudança pra um mundo melhor. Você deixa de olhar pro outro, e é sobre o outro que você está escrevendo.
Digo isso porque é mais comum do que deveria ser, autores se ofendendo quando alguém, que pode ser até mesmo do grupo marginalizado representado, diz que as representações feitas estão erradas. Pior: Há autores que compartilham essas críticas com seus leitores fiéis e, conscientes ou não, acabam induzindo esses leitores a irem atacar esse “hater”, ou incutindo a ideia de que qualquer pessoa que o critique vai ser tão zoada e comentada no grupo quanto o “hater” em questão está sendo.
As pessoas, em geral mesmo, procuram validação na palavra dos outros, e temos a impressão de que um número grande de gente dizendo a mesma coisa tem toda a razão. Bom, a J. K. Rowling é uma das autoras mais populares do planeta, mas nem a quantidade de fãs que a defendem torna ela menos transfóbica e racista. Ela tem apoio pra ser como ela é, o que não significa que ela ser assim é o certo.
Os autores costumam dizer coisas das quais não se dão conta; apenas depois da reação de seus leitores é que eles descobrem o que haviam dito.
— Umberto Eco, Confissões de um jovem romancista (ed. Cosac Naify, 2013)
Mas eu também sou autor, eu também recebo críticas, eu também erro, eu também fico abalado dependendo da crítica que recebo hoje, e já fiquei muito mais abalado em momentos anteriores da minha vida, quando eu não tinha essa experiência de lidar com as opiniões dos leitores. A não ser que você seja um vilão de desenho animado ou tenha seu próprio documentário de true crime na Netflix, você também não quer se ver como uma má pessoa — e nos ver errando, ver que nossos erros ainda por cima ficaram públicos, é realmente um sentimento aterrorizante, porque a gente tem a intenção de ser uma boa pessoa, de fazer tudo “corretamente”. Se a gente se acha uma boa pessoa, é lógico que a gente vai negar de imediato quem diz que cometemos um erro ou que, publicamente, não demonstramos ser tão bons quanto acreditamos ser.
Só que não admitir nossos erros é persistir nesses erros. É recusar a sensação ruim de estar errado pra preservar apenas a sensação boa de nos julgarmos excelentes pessoas. E pessoas excelentes não precisam mudar, não é mesmo?
Portanto, se você quer escrever sobre pessoas de grupos sociais marginalizados, você tem que se dispor a ouvir essas pessoas, e às vezes mesmo quando elas não têm razão. Porque isso acontece também, é lógico. Uma pessoa trans não pode falar por todas as pessoas trans, porque tem muitos militantes mesmo que não entendem que nós somos plurais, que nem todos vivemos a nossa transgeneridade interna e externa da mesma forma, por exemplo. Mas você precisa ouvir a pessoa que se dispôs a dar um feedback, sobretudo se ela não vier te xingando nem nada. Questione a si mesmo(a) se você se ofende porque o comentário é de fato ofensivo, ou porque alguém simplesmente disse algo que você não gostou, ainda que educadamente.
Além disso, às vezes uma crítica negativa não faz sentido pra gente na hora, mas pode fazer sentido futuramente. Lá pra 2010, eu acho, eu quis fazer uma história entitulada “África”, e hoje dou graças a Deus que minha melhor amiga disse que estava ruim, porque atualmente eu consigo ver até que estava até pior do que eu pensava. Era o cúmulo do racismo disfarçado de “preconceito é errado”. E os problemas que ela apontou nem estavam tão relacionados ao racismo, porque nós dois somos brancos, a gente não tinha como perceber ainda muita coisa, a informação ainda era um pouco escassa sobre isso na época. Mas lembro de ela dizendo que faltava algo, que algo parecia errado e tudo mais. Fiquei chateado, mas, tendo ao menos ciência de que eu estava fazendo uma história sobre um povo que foi escravizado e marginalizado (porque também foi na época que eu comecei a ler algumas coisas que apareciam sobre o movimento negro), eu preferi dar um tempo nessa história e estudar mais até me sentir pronto. Foi estudando durante esses anos todos que eu entendi o tudo que eu fiz de errado. Também é um caso claro de que a nossa boa intenção não nos salva de errar. Não querer ser racista não significa que nós não sejamos.
Ouvir os outros, sobre os quais estamos escrevendo, é o primordial. Mas também temos que nos ater à pesquisa. E pesquisar não é só jogar uma pergunta no Google e ler um artigo pequeno, ou ver um vídeo do Youtube e pronto. Não. É abrir todos os links possíveis sobre o mesmo tema e ver o que eles concordam e discordam entre eles; é procurar livros de ficção e acadêmicos com esses temas; é assistir vários vídeos; é perder a vergonha de perguntar coisas íntimas pros outros (que, acreditem, se dispõem mesmo a te ajudar quando você diz que precisa de informações pro seu livro); é ter a humildade e a preocupação de contratar leitores críticos e sensíveis, que estejam a par das pautas sociais e saiba te apontar o que você, ainda em aprendizado, não soube descrever.
É por isso que a Roleta da Diversidade é prejudicial: Quando um autor está mais preocupado em colocar todos os tipos de diversidade em vários livros, e ele publica, sei lá, um livro por mês, ele não se aprofunda nos temas mesmos sobre os quais ele está escrevendo: Num mês, ele vai lá estudar que ser trans é não se identificar com o corpo que nasceu, vê as estatísticas, uau!, e que a maioria das pessoas trans é expulsa de casa, daí escreve um livro; no próximo, ele pega uma pessoa que é negra, empodera ele com terno e gravata, coloca como CEO e pronto! Voilà! Diversidade empoderada, yay!
Mas e o contexto social dessas pessoas?
Você foi a fundo o bastante pra aprender qual é a cultura trans? Quais são as culturas negras? Você sabe os lugares que eles costumam frequentar e os porquês? Você sabe as gírias? Você sabe como foi o processo de autodescoberta dessa pessoa trans, e que muitas mulheres trans se descobrem enquanto drag queens em casas noturnas pequenas, ou que travestis que trabalham nas ruas ainda escondem a navalha debaixo da língua? Você sabe qual é a origem desse homem negro, se o bisa ou tataravô dele foi escravo? Quais os códigos e dialetos que ele conhece da sua origem, as músicas da cultura dele que ele escuta, se ele é descendente direto de algum país africano ou de indígenas?
Ou você está apenas pegando um personagem branco, hetero e cisgênero e trocando a roupa dele por um vestido, ou a pele dele pela cor da de um afrodescendente, enquanto todas as vivências dele continuam sendo as de um homem branco? Nas roupas que ele veste, nas músicas que ele ouve, no sucesso da carreira dele, no salário igualitário que ele recebe, na vantagem de nunca ser confundido com alguém de cargo inferior, no tom negro mais claro da pele dele, no cabelo raspado ou um crespo bem aparado, etc.
Aliás…
Você sabe o que significa “apagamento”?
A representatividade que apaga
Com certeza a Madonna tinha a melhor das intenções quando lançou Vogue, já que ela sempre foi amiga de pessoas LGBT+ e puxava todos eles pra trabalharem com ela.
Foi o ator Clark Gable quem ameaçou boicotar o Oscar se não permitissem que a atriz Hattie McDaniel pudesse entrar pra recebê-lo.
É verdade que foi graças a pessoas brancas e heteronormativas que muitos de nós, “de minorias”, conseguimos chamar a atenção ou ganhar proteção em diversas circunstâncias e momentos históricos. É por isso que aliados são tão importantes. Somos gratos pelo apoio, de verdade. E, até aí, tudo bem.
O problema é que a nossa cultura é tão profundamente preconceituosa que quem foi aplaudida pela dança vogue foi Madonna, e quem foi considerado e lembrado como herói foi Clark Gable.
Se você também é de algum grupo social marginalizado, você já sabe do que eu estou falando, porque todos nós falamos disso o tempo inteiro entre nós. Agora, se você está por fora, é o seguinte:
Não importa o quanto nós, de grupos marginalizados, nos esforcemos: sempre vai ter uma pessoa branca, hetero e cisgênero que vai conseguir alcançar o mesmo objetivo que o nosso fazendo menos ou quase nenhum esforço.
Este é um link de 2012, sobre a dificuldade de pessoas pretas em terem acesso e conquistarem coisas que são facilitadas a pessoas brancas, mas a questão ainda é atual. E este vídeo é um exemplo de como pessoas LGBT+ crescem se sentindo cobradas a darem o melhor de si porque, de fato, as oportunidades e o reconhecimento também nos são negados ou dificultados, ainda que em diferentes medidas.
Estando há muito tempo neste meio, eu sempre ouvi dizer que é comum, inclusive, que pessoas privilegiadas se apropriem de ideias e trabalhos de pessoas menos privilegiadas, e não tem muito o que se possa fazer, já que as pessoas menos privilegiadas nunca são ouvidas ou são desacreditadas — o próprio Elvis Presley e suas músicas é um exemplo disso, mas também tem este caso aqui, contado pelo podcast Não Inviabilize, em que uma mulher tem todo o seu trabalho roubado pelo próprio chefe.
Mas a gente nunca imagina que isso vai acontecer com a gente, não é? Quer dizer, a gente já se fode tanto que tem a esperança de que as coisas pelo menos não piorem.
Mas aconteceu, poucos anos atrás, de eu comentar no meu Twitter que tive uma ideia de tema X, que não era muito comum, que eu estava pesquisando pra fazer isso e tudo mais. Lá, autore Fulane, pessoa branca, hetero e cis, me seguia, e Fulane já era popular com livros LGBT+. Resumindo todo o rolê, Fulane não só leu e se inspirou, como copiou uma cena inteira e muito específica do meu livro (só mudou os nomes dos personagens e pôs uns diálogos, basicamente), que não é aquele tipo de cena comum a quaisquer livros, e foi feita por mim com um propósito; e, pra piorar, Fulane ainda me contratou pra revisar seu livro, me convencendo a cobrar bem abaixo do meu valor normal, e eu precisava de grana. Foi assim que eu descobri.
Isso acabou comigo.
É claro que eu fui perguntar pros meus amigos muito próximos se eu não ‘tava ficando maluco. E eu não ‘tava. Não tem nem problema Fulane usar expressões e termos que eu usei, não sou dono dessas coisas, mas copiar uma cena tão própria que até hoje não se repete em livro nenhum é outra coisa.
Mas é claro que eu não falei nada. Guardei tudo, tenho aqui, mas não falei nada. Porque eu precisava mesmo do dinheiro, e porque Fulane é grande e privilegiade. Se eu tirasse satisfação com Fulane, eu ia me queimar com o meio literário inteiro, sendo que, de novo, eu precisava manter a boa aparência pra ter o meu ganha pão. Mesmo se eu expusesse a pessoa publicamente, ninguém ia acreditar em mim. Eu não tinha nem público na época, mal tenho agora, só uns três amigos do meio que poderiam me defender, enquanto que Fulane tem sua própria massa de leitores. Sendo popular e amigue de muita gente, acreditariam na palavra de Fulane independentemente do que eu dissesse ou mostrasse. Quem é que vai acreditar num autor que, em dois meses, não consegue pegar nem cinco avaliações num ebook? Um forasteiro que, ainda por cima, fica fazendo artigos criticando outros autores.
Isso fora o fato de eu já ter ouvido outros casos nesse meio em que uma pessoa que se sentiu copiada foi desacreditada; ou pessoas de grupos marginalizados que questionam as representações que os autores fazem deles e são tratados como haters. E não foi apenas um, ou dois, ou três, ou quatro, ou cinco casos apenas. Foram vários.
Quem tem a perder falando essas coisas publicamente sou eu. Neste mesmo momento, alguém já deve estar revirando os olhos, lendo o meu relato como se fosse puro drama , não entendendo o porquê de eu preferir não dar nomes e especificar nada se eu me sinto com a razão.
É verdade que, enquanto eu fiquei mal pra caramba, a pessoa ficou lá, ganhando um dinheiro que eu nunca nem cheguei perto de ganhar com venda de livros, e sendo elogiade como se fosse uma das melhores histórias que as pessoas já leram.
E sabe qual é o pior?
A pessoa já tinha revisado comigo mais de uma vez, e nunca se deu ao trabalho nem de aprender a escrever o meu nome.
É essa a sensação do apagamento.
É essa onda gigante que desaba em cima da gente pra nos enterrar e nos impedir de avançar, enquanto essa onda vai e alcança bem longe, enquanto ficamos afogados e presos na areia.
Este vídeo comenta mais um pouco sobre como nós, LGBTs+, temos receio em pedir ajuda. Mesmo quando a gente vem de uma família que nos apoia e tudo mais, a gente está acostumado a ser sempre negado, desacreditado, afastado pelo resto da sociedade.
Enfim, o apagamento é exatamente isso: quando um grupo social predominante, ou uma pessoa privilegiada, faz não só uma apropriação cultural de grupos e de indivíduos menos favorecidos, como silenciam esses grupos e esses indivíduos, tratando-os como rebeldes sem causa, loucos, baderneiros, invejosos…
(…) “Quem pode falar?”, “O que acontece quando nós falamos?” e “Sobre o que nos é permitido falar?”.
(…) Falar, muitas vezes, implica receber castigos e represálias e, justamente por isso, muitas vezes, prefere-se concordar com o discurso hegemônico de sobrevivência? E, se falamos, podemos falar sobre tudo ou somente sobre o que nos é permitido falar? Numa sociedade suprematista branca e patriarcal, mulheres brancas, mulheres negras, homens negros, pessoas transexuais, lésbicas, gays, podem falar do mesmo modo que homens brancos cis heterossexuais? Existe o mesmo espaço e legitimidade? Quando existe algum espaço para falar, por exemplo, para uma travesti negra, é permitido que ela fale sobre Economia, Astrofísica, ou só é permitido que fale sobre temas referentes ao fato de ser uma travesti negra?
— Djamila Ribeiro, Lugar de fala (ed. Pólen, 2019)
Quando você escreve sobre outras pessoas menos privilegiadas, você tem real consciência dos seus próprios privilégios?
Você entende que, embora seja mulher, por exemplo, se você é uma mulher branca, hetero e cisgênero, você ainda vai ser mais aceita publicamente do que pessoas LGBT+, pessoas de cor de pele diferentes, pessoas de outras etnias, pessoas com PCD ou PNE?
Você entende que, enquanto você escreve livros sobre pessoas LGBT+ e pessoas pretas, essas pessoas não conseguem receber o mesmo reconhecimento e a mesma remuneração que você?
Você consegue entender, sem se ofender, o que a Viola Davis diz neste vídeo?
Quantos livros de pessoas pretas você já leu? Em quantos desses livros todos os personagens eram pessoas pretas, ou em quantidade que equivalesse à quantidade de pessoas brancas? Ou onde os dois do casal eram pessoas pretas?
Quantos autores trans, não-binários e intersexo você conhece? Quantos livros você já leu com esses protagonistas? Você costuma ler e assistir histórias sáficas por conta própria, ou só quando seus amigos escrevem?
Você compartilha e tenta ajudar genuinamente esses autores, esses artistas, que são de grupos marginalizados, ou você sente que divulgar autores que você não conhece, não são do seu grupo, é uma competição literária indesejada? Mas você ao menos compartilha outros trabalhos de artistas pretos e/ou queers fora da sua bolha? Você compartilha informações relevantes sobre esses grupos, pra que as pessoas possam ter conhecimentos mais objetivos e preparatórios pra que seus leitores consigam lidar e também ajudar essas pessoas na vida real?
Eu brinco que, muitas vezes, pessoas brancas nos colocam no lugar de “Wikipreta”, como se nós precisássemos ensinar e dar todas as respostas sobre a questão do racismo no Brasil. Essa responsabilidade é também das pessoas brancas — e deve ser contínua.
— Djamila Ribeiro, Pequeno manual antirracista (ed. Companhia das Letras, 2019)
Não é nada incomum também pessoas LGBT+ serem procuradas apenas quando as pessoas heteronormativas precisam de alguma informação sobre nós pra fins próprios.
A minha proposta principal como autor e como pessoa LGBT+ é disseminar a informação, o conhecimento — então eu deixo claro que sim, eu estou aqui pra conversar, eu me disponho não somente a explicar todo o necessário, como consigo todo o material de estudo de que as pessoas precisam.
Mas às vezes bate um esgotamento, uma irritação, uma chateação…
Porque as pessoas fazem perguntas que elas poderiam simplesmente encontrar dando um Google.
Sabe?
Existe uma exaustão comum a nós todos desses grupos marginalizados, de termos que ficar praticamente todos os dias dando explicações aos outros.
É óbvio que mulheres brancas também passam por isso, já que a maioria dos homens hetero e cis não sabe nem como funciona uma menstruação. Mas, sem dúvida, com a gente que é “diferente” a coisa fica ainda pior.
As pessoas nos fazem perguntas que elas jamais fariam a uma pessoa hetero e cis. Ou, de alguma forma, somos lembrados o tempo todo que o nosso gênero, a nossa sexualidade, a nossa cor não é o padrão — sendo que ninguém comenta o tempo todo que Ciclana é hetero, que veste “roupa de hetero”, que “ouve e assiste coisas de hetero”, por aí vai.
Mesmo quando a gente se dispõe a ajudar por meio do diálogo, tudo isso acaba pesando em algum momento, porque nos lembra de como somos diferentes, de que somos “o outro”, de como as pessoas nos vêem como extraterrestres, e de como as pessoas só lembram de nós quando precisam de nós, mas nos esquecem assim que elas conquistam suas coisas, às vezes usando até as informações que nós damos.
Mas é por essa impaciência que até os militantes mais pacientes, menos banais, ganharam essa fama de chatos. É difícil explicar pra pessoas que estão confortáveis onde elas estão que estamos condenados a lidar com nossas condições — de gênero, de sexualidade, de pele, de etnia, de deficiências, etc. — todos os dias, e que essas condições inteferem em tudo o que fazemos, em todos os diálogos que temos, em todas as nossas relações no dia a dia. Então bate mesmo uma pressa de que as pessoas nos entendam pra que não precisemos mais ter que nos explicar, ou que as pessoas tenham a bondade de se manterem informadas por conta própria pra não ficarem nos lembrando de que somos isso ou aquilo.
Não lembro mais em quais vídeos, mas o Pirula comentou algumas vezes que a reação dos movimentos sociais nos últimos anos é como uma mola: uma mola que esteve durante muito tempo compressa e, quando ela finalmente consegue se soltar, ela se solta de uma vez, de repente, longamente.
Na minha adolescência, eu mesmo morria de medo de que minha mãe soubesse qualquer mínima coisa sobre mim, e passei anos da minha vida sufocado não só com as confusões do meu próprio gênero e da minha sexualidade, como com outros aspectos da minha personalidade que estavam diretamente relacionados a isso. Porque estar no armário é estar ali, fechado, com um monte de coisas dentro. Nunca é um armário vazio. É um armário com tudo que é seu.
E tem pessoas que ainda vivem nesse armário, que não podem falar absolutamente nada em casa, mas encontram na internet essa libertação. Fora as pessoas que estão descobrindo os termos, aprendendo mais sobre o assunto, se empolgam e acabam aborrecendo todo mundo quando saem atirando militância pra todos os lados, sem entender os contextos pros quais estão mirando (nessas, eu já fui chamado de homofóbico, misógino e transfóbico por pessoas que não sabiam que eu sou queer, elas apenas presumiram que eu era um homem cis).
Mas, ainda assim, perguntar é sempre muito melhor do que não perguntar. É claro que nem todos de nós estudamos, estamos aptos a responder sobre as nossas próprias questões, algumas pessoas também são sensíveis e se sentem engatilhadas — mas é só perguntar se pode perguntar, ou se a pessoa conhece alguém que pode tirar suas dúvidas.
Porque o medo de perguntar acaba deixando as pessoas à deriva com suas próprias impressões, com o que elas vêem e o que elas ouvem, e nem sempre essa pessoa vai interpretar corretamente tudo isso.
Conclusão! Ufa!
Então, assim, se você quer escrever sobre grupos menos privilegiados, mas não está disposto(a) a ouvir o que temos a dizer…
Não é que pessoas de fora dos nossos grupos não possam escrever sobre nós. Elas podem. E devem. Quanto mais histórias, melhor! Várias das minhas histórias favoritas sobre de diversidade foram feitas por pessoas de fora do grupo ao qual pertenço. E, afinal, as novas gerações já estão se vendo e se reconhecendo em livros, filmes, séries e jogos! Ninguém precisa mais deixar o Kazaa ligado a madrugada inteira no final de semana, com internet discada pra baixar um filme LGBT+ com qualidade péssima, e procurando outros no submundo da web.
Mas, enfim, se você não está disposto(a) a ouvir o que temos a dizer, então talvez você não seja a pessoa em quem confiaremos como alguém que sabe fazer uma representação válida nossa. Entende?
Afinal, todos nós já estamos bastante cansados de ver estereótipos e caricaturas nossas no entretenimento. Não importa quem vai escrever ou produzir algo sobre nós, desde que nos ouça, nos compreenda, e tenha o comprometimento e a persistência de nos entregar o seu trabalho mais respeitoso possível.
E você também não deve se sentir na obrigação de colocar representatividade o tempo todo. É claro que, num país como o Brasil, onde a maioria é negra, onde muita gente é LGBT+, é irreal que não haja diversidade dentro da sua história. Mas não é irreal brancos namorando brancos, especialmente a depender da localidade em que se escreve.
Se sentir e fazer algo por obrigação não é legal nem pra você nem pra mim, porque pode te pressionar entregar um trabalho precipitado ou pela metade, e isso faz com que eu veja sua representação como equivocada ou prejudicial pra minha comunidade.
Então só tenha calma, tire um tempo pra estudar e conversar com pessoas mais informadas sobre esses assuntos e, enquanto isso, ajude outros autores LGBT+, pretos, asiáticos, PCD, etc., a divulgarem os trabalhos que eles fazem a partir de experiências próprias.
Bom! Espero que, apesar de doloroso, este texto tenha sido informativo, e que coloquem só alfinetes cor de rosa no meu bonequinho de vodu, por favor, e obrigado.
Até a próximo artigo inconveniente e gigante!
Bye, Barbie!